domingo, 20 de dezembro de 2009

9. Um Vitral enigmático. A junção-disjunção de Psique com Eros.

É, de facto, nas entranhas da terra que reencontramos Psique, unida ao seu mestre-parceiro, no vitral[1] que originariamente ornava a janela da Biblioteca do proprietário, virada não exactamente a poente, como já foi afirmado, mas sim a noroeste.[2]


37. José de Almada Negreiros, Eros e Psique, vitral, 400 x 50, Museu da Assembleia da República, Residência Oficial do Presidente, fotografia de Barbara Aniello, publicado em Barbara Aniello, As metamorfoses de Psique na Casa da rua de Alcolena: em busca da obra de arte total, em Monumentos, revista semestral de edifícios e monumentos, nº 30, Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, Lisboa, Dezembro de 2009, pp. 106-113.

É particularmente significativo que Almada coloque esta obra paralelamente ao ponto cardeal que coincide, no seu mapa erudito, com a orientação e o destino de Portugal.

É importante sublinhar que esse vitral indica o sentido da “Direcção Única”, superação e síntese, segundo Almada, de todos os contrastes e de todas as divisões.

Portugal define-se no extremo sudoeste, fazendo parte integrante do ocidente e do sul da Europa, exactamente SW. [3]


38. José de Almada Negreiros, Portugal no mapa da Europa, publicado em SW: Sudoeste: cadernos de Almada Negreiros, admin. Dário Martins, Edição facsimilada, Contexto, Lisboa, 1982, n. 1, p. 2.

Tal como na sua revista SW, Almada estabelece no vitral as coordenadas para apontar ao lugar e ao destino da sua Nação, futura herdeira do Quinto Império, segundo a linha filosófica que vai de padre António Vieira até Fernando Pessoa.

Este paralelo entre obra figurativa e literária é uma constante da produção artística almadina.


39. Posição do vitral com respeito à imagem de Portugal no mapa da Europa de José Almada Negreiros.

Retomando em consideração o elemento simbólico da chaminé fingida, gostaríamos de frisar a analogia entre este elemento no terraço e uma escultura análoga no jardim, com função de canteiro, que reitera o mesmo desenho de feição tríplice. Ambas as esculturas, definidas pela justaposição de dois sólidos rectangulares, albergando um foro circular, na extremidade oblíqua superior, não só sublinham o conceito analógico-hermético segundo o qual “o que está em cima é análogo ao que está em baixo”,[4] como também poderiam ser um expediente simbólico, cogitado por Varela, para insistir na orientação privilegiada da Casa, apontando a chaminé para Sudoeste e o canteiro para Noroeste.
Será que os dois elementos escultóricos varelianos indicam a Direcção Única, na qual insistem quer o vitral quer os azulejos de Almada? Será que o profundo entendimento entre arquitecto e pintor levou a uma análoga e recíproca orientação dos próprios trabalhos, no mesmo sentido geográfico, filosófico e especulativo?




40. e 41. Casa da Rua Alcolena, chaminé fingida e canteiro. Fotografia©Paulo Cintra, Novembro 2008.

Por outro lado, é a revista Eros, fundada por José Manuel, a fornecer, mais uma vez, a chave interpretativa e a motivação da escolha da localização do Vitral,

Assim tu vais morrendo, lentamente,
Na incerta imagem dum vitral antigo
Iluminada pelo sol poente…[5]
Aqui, sem véus, e sem nenhum revestimento teatral, Psique e Eros estão representados nus, de acordo com o mito e com a escrita de Almada:
Ele apresentou-nos nus um ao outro. O Acaso, a deus desconhecido, a expectativa de todo o instante, e que não tem outra ambição que a da mesma sorte, outra vida que a própria Harmonia, foi p’ra mim mais luminoso que o próprio sol: ambos nus a primeira vez que nos vimos e sem sinal das nossas condições no mundo. Reconheço aqui a linguagem dos deuses na voz do Acaso.[6]
A nudez e a luz estão relacionadas.
Quero-te nua
Como uma estrela[7]
De resto, estamos num espaço privado e num ambiente particularmente íntimo da vida do poeta, filósofo e compositor José Manuel, tratando-se do seu hortus conclusus, reservado à leitura, ao estudo, à escrita e à recepção de poucos amigos cuidadosamente escolhidos.
Eu queria amar-te para além de todas as perplexidades, de todas as interrogações….
Princesa ou pastora, humana ou divina, queria-te nua, sem artifícios, sem véus, sem máscaras.[8]
A interpretação do vitral, adquirido pelo Museu da Assembleia da República num leilão em 2001, tem sido objecto de leituras divergentes, devido à sua suposta iconografia controversa.[9]

Discordando das interpretações anteriores, em minha opinião, trata-se dum propositado apagamento ou, melhor, ocultação dos atributos sexuais de ambos os protagonistas.

Com base nos estudos anteriores à versão definitiva do vitral, um óleo e uma aguarela, podemos afirmar que Almada parte duma evidente distinção de identidade e funções, com Eros deitado e adormecido e Psique acordada e despertadora (aguarela),


42. José de Almada Negreiros, Eros e Psique, aguarela e lápis sobre papel, 16 x 56, n. ass. e n. dat., Col. Jorge de Brito, publicada no catálogo Almada: a cena do corpo, Exposição no Centro Cultural de Belém (de 27 de Outubro de 1993 a 15 de Janeiro 1994), Lisboa, 1993, p. 227. Fotografia de Victor Branco e Campiso Rocha Henriques Ruas.

chegando a uma progressiva indistinção andrógina e a uma indeterminação de papéis (óleo).[10]


43. José de Almada Negreiros, Eros e Psique, estudo para o painel decorativo da residência do Arq. António Varela, Encosta da Ajuda, Óleo sobre papel, 655 x 3020, n. ass. e n. dat., colecção particular, Lisboa, publicado no catálogo Almada: a cena do corpo, Exposição no Centro Cultural de Belém (de 27 de Outubro de 1993 a 15 de Janeiro 1994), Lisboa, 1993, p. 227. Fotografia de Victor Branco e Campiso Rocha Henriques Ruas. Republicada em Sarah Afonso/Almada: exposição conjunta, catálogo curado por Rui Mário Gonçalves, Miguel Torga, João Vasco, Arq. José de Almada Negreiros, Cascais, 1996, p. 191.

Almada funde dois momentos-chave do mito: quando Psique contempla o vulto de Eros através da luz da lucerna, transgredindo a interdição, e quando, por sua vez, Eros desperta a sua amada do sono infernal. Estas são as duas circunstâncias críticas do drama. O primeiro acto custará a Psique a queda, o segundo valer-lhe-á a apoteose.
O aprofundado estudo do mito em chave alegórica, por parte de Almada, está documentado na citada peça teatral, O mito de Psique, onde Eros não só cumpre várias tentativas de acordar a mulher, mas simultaneamente lhe relembra, como numa analepse, o passado atrevimento, aludindo à actual troca de papéis.
Ela deixa cair a cabeça desamparadamente. Ele montando-a animalmente a cavalo, toma-lhe a cabeça com ambas as mãos e sacode-lha enquanto fala para os lábios dela.
ELE - Mulher, vence o teu sono! Suspende a tua fragilidade! Entende plos meus olhos o que viste com os teus. Eu falo-te da raça sagrada da mestiçagem dos deuses e humanos que vivem por amor. Por amor. Por amor.
Tu, mulher minha, que me espiaste pra teres mais certeza prò nosso casamento do que fé no teu amor, ouve o sangue e a divisa da nossa raça: por amor, por amor, por amor. Tu és da nossa raça, mas o mundo tem-te. O mundo não é senão casa de humanos e não fecha o espaço todo dentro de si. Olha o que viste! Foi-te dado olhares, vê! Vê que não te é dado veres senão a ti mesma, não somos deuses, eles sabem estar sòzinhos, mas vê por eles como hás-de olhá-los pra ficares sozinha, tu.
ELA - Por amor.
ELE - Sim. Por amor. Mulher minha, não te deixes vencer nem por mim, vence tu, respeita o nosso casamento. Faz como eu por ser igual aos que sabem estar sòzinhos, única diferença sagrada entre humanos.
ELA - (Conseguindo juntar as mãos.) Que queres que eu te diga, homem? Eu não sei nada de nada, senão, que estou cheia de espanto e de medo!


Ele retira-se da posição, afaga-lhe as faces com carinho, beija-a na testa e fica de pé ao lado do divã.

ELE - Também eu não sei nada de nada, nem nada que eu desejei saber, alma da minha alma. Por amor é-me bastante. Mas tu viste: tens que ver o que viste! É com espanto e com medo que estas coisas nos servem.


Ela cerra os olhos e como que adormece.[11]
A troca de papéis, no plano teatral, corresponde à troca ou partilha de identidade, no plano iconográfico. A peça teatral revela-se a chave interpretativa do vitral, respondendo às três interrogativas fundamentais que estão na base da sua complexa iconografia: a androginia dos protagonistas, o ciclo vida-morte-renascença, a visão como antecâmara do Conhecimento.


[1] A reprodução aqui publicada foi feita pela autora e foi autorizada pelo Museu da Assembleia da República. Uma outra reprodução desta obra encontra-se na página 10 do catálogo: AA.VV., Leilão de Pintura e Escultura Portuguesa, Colecção Canto da Maya, Palácio do Correio Velho, Lisboa, 2000, que se refere a ela, com o n.º 547, intitulando-a A queda de Ícaro.
[2] Devo ao arquitecto Hugo Nazareth Fernandes a sugestão de levar in loco uma bússola com a qual aferi a orientação da Casa e do vitral, podendo assim confirmar a correspondência entre a obra e os textos da revista Sudoeste.
[3] José de Almada Negreiros, SW: Sudoeste: cadernos de Almada Negreiros, admin. Dário Martins, Edição facsimilada, Contexto, Lisboa, 1982, n. 1, p. 5.
[4] Devo ao Arquitecto Hugo Nazareth Fernandes esta observação neste contexto.
[5] Fernando Guimarães, Poesias, in Eros II (Outubro 1951), op. cit.
[6] José de Almada Negreiros, Obras Completas, Teatro, vol. VII, op. cit., p. 220.
[7] José Manuel, Eros, in Eros I (Abril 1951), op. cit., n. I, 15.
[8] José Manuel, Alquimia do sonho, op. cit., p. 40.
[9] O primeiro estudo sobre o vitral deve-se a Cátia Mourão, Contributo para a análise iconográfica de um vitral de Almada Negreiros, in Revista de História da Arte, n.º 3, Abril, 2007, Instituto de História da Arte, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, pp. 269-279. Veja-se também: AA.VV., Leilão de Pintura e Escultura Portuguesa, Colecção Canto da Maya, op. cit., p.10, que se refere à obra com o título de A queda de Ícaro.
[10] As fotografias destas duas obras Eros e Psiquê, estudo para o painel decorativo da residência do Arq. António Varela, Encosta da Ajuda, Óleo sobre papel, n. ass. e n. dat., colecção particular, Lisboa e Eros e Psique, aguarela e lápis sobre papel, n. ass. e n. dat., Col. Jorge de Brito, foram retiradas do catálogo Almada: a cena do corpo, Exposição no Centro Cultural de Belém (de 27 de Outubro de 1993 a 15 de Janeiro 1994), Lisboa, 1993, p. 227. Em particular, o estudo em aguarela foi exposto e publicado no catálogo da Exposição Almada, curado por Margarida Acciaiuoli, patente no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian (de 27 de Junho a 14 de Outubro de 1984), Lisboa, 1984, com o número 435.
[11] José de Almada Negreiros, O mito de Psique, op. cit., pp. 176-177.

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