domingo, 20 de dezembro de 2009

Capa


Agradecimentos

Este livro, concebido em Março e acabado em Maio de 2009, é o resultado duma investigação que se insere num projecto de Pós-Doutoramento mais amplo e abrangente, cujo tema é O diálogo inter-artes em Portugal no século XX, financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia e acolhido pelo Instituto de História de Arte da Universidade de Lisboa e pelo Centro Estudos Comunicação e Cultura da Universidade Católica de Lisboa.

No percurso que levou à sua concepção, preparação e edição, quero agradecer a todas as pessoas que contribuíram:

às Instituições que concorreram para o êxito deste projecto: Fundação Calouste Gulbenkian, Fundação para Ciência e Tecnologia, Guimarães Editores, Academia Nacional de Belas-Artes, Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, IHA - Instituto de História de Arte da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, CESEM - Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, CECC - Centro de Estudos de Comunicação e Cultura da Universidade Católica de Lisboa, Assembleia da República, Tribunal de Contas, Fundação Mário Soares, Palácio do Correio Velho, Leilões e Antiguidades S.A., Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian, Biblioteca Nacional de Portugal; Biblioteca de Belas Artes da Universidade de Lisboa, Biblioteca da Universidade de Coimbra;

ao Professor José-Augusto França, pelo que representa na nossa História da Arte e pelo seu entusiasmo, estímulo e ajuda no projecto;

ao Professor Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão, pelo impulso, apoio moral e exemplo de integridade ética e profissional;

ao Dr. Paulo Teixeira Pinto, por ter acreditado no projecto e defendido a sua publicação;

ao Júri do Concurso de Apoio à Edição do Serviço de Belas Artes da Fundação Gulbenkian, Prof. Doutor Luiz Oosterbeek, Dr. Paulo Pereira e ao seu Presidente e Director deste Serviço, Dr. Manuel da Costa Cabral, por ter classificado o livro em 1º lugar entre 17 candidatos;

à Professora Maria Manuela Toscano, pela assistência amigável e por ser um modelo de rigor científico;

à Senhora Dª. Maria do Céu Pimentel, sobrinha de António Varela, pela sua total e entusiástica disponibilidade na partilha do espólio do arquitecto;

à esposa e à filha de António Paiva, Senhora Dª. Alice Berta Gonçalves Alves e Senhora Dª. Maria Luísa Alves de Paiva, que muito generosamente me ofereceram acesso ao espólio do escultor;

à Senhora Dª. Madalena Ferrão, filha de José Manuel, que partilhou comigo preciosas informações e fontes sobre o poeta;

ao fotógrafo Paulo Cintra pelas suas sugestões, pela inesgotável paciência, incessante disponibilidade e fraterno apoio;

à Senhora Dra. Andrea Azevedo Cardoso, pela ajuda constante e pelos conselhos humanos e profissionais;

à Advogada Senhora Dra. Rosa Videira, apaixonada defensora do Direito de Autor, por me ter ensinado a proteger este filho de papel;

ao professor e escultor João Duarte, por me ter disponibilizado a sua colecção de medalhas e todas as informações sem as quais o aprofundamento da parte que concerne à escultura não teria sido possível;

à Senhora Dª. Maria da Conceição Delgado e Senhora Dª. Nádia Marina da Silva Pina Lomar do Arquivo da Biblioteca da Faculdade de Belas Artes, pela ajuda concreta na pesquisa dos documentos;

ao Dr. José Viriato por me ter mostrado o acervo dos gessos da Faculdade de Belas Artes;

à Senhora Dra. Constança Rosa e ao Dr. Carlos Morais, Dr. Marco António de Mesquita, Dra. Anabela Igreja Freitas, Dra. Dolores Sebastião, Dra. Maria João Santos da Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian, pela grande profissionalidade, disponibilidade, carinho e ajuda no acesso às fontes;

à Dra. Manuela Rego e à Dra. Graça Garcia, por me ter facilitado a pesquisa dos documentos;

aos escultores Professores Domingos Soares Branco, Virgílio Domingues, António Vidigal, por terem conversado comigo e partilhado importantes recordações do convívio com António Paiva;

ao colega e amigo Arquitecto Hugo Nazareth Fernandes, pela generosa partilha de ideias e fontes, pelos conselhos desinteressados, pelo encorajamento e pela sua lealdade;

a Nuno Nazareth Fernandes, pelo apoio documental e moral;

à Senhora Dª. Luísa Venturini, pelas sugestões e pelo olhar de pássaro;

à minha amiga Professora Maria Teresa Álvares de Carvalho, pela ajuda essencial na descodificação da linguagem geométrica de Almada e pelos conselhos lexicais;

ao Dr. Renato Borges de Sousa pelo auxílio indispensável;

à minha amiga Dra. Inês Espada Vieira por ter revisto o texto, pela sua generosa dedicação e imprescindível encorajamento;

a Joana Pontes e Pedro Néu, pelo amigável suporte moral;

a Rita Dinis da Gama e a Janine Barroso, madrinhas inigualáveis desta obra;

à minha mãe e às minhas irmãs, pelo alento;

aos meus três filhos, Davide, Costanza e Luca, pela paciência;

a ti que não queres ser agradecido

e a mim por não ter desistido.

Nota da Autora.

O presente trabalho surgiu com o intuito de prestar homenagem à obra e legado de José de Almada Negreiros, António Varela, António Paiva e José Manuel, que colaboraram na criação de uma obra de arte, no meu entender, única e total. Este livro tem também a esperança de contribuir para a preservação, tutela, classificação e reabilitação da Casa da Rua de Alcolena.

Contudo, esta edição sai mutilada de algumas das suas imagens, que aqui não publicamos, em virtude da impossibilidade de obter a necessária autorização e isenção dos Direitos de Autor junto das herdeiras de José de Almada Negreiros.

Por causa da remuneração que a família Almada Negreiros pediu, que inviabilizou a edição do livro, feito originariamente de imagens alternadas com texto, a autora viu recuar o patrocínio já obtido junto da Câmara Municipal de Lisboa, que tinha avançado com um apoio em troca da compra de exemplares, e perdeu sucessivamente dois editores que se tinham comprometido com a publicação.

Decidiu-se então optar por uma edição digital disponível gratuitamente para o público.

Aqui fica o meu profundo agradecimento à Fundação Calouste Gulbenkian, cujo júri Internacional no Concurso de Apoio à Edição classificou em 1º lugar esta obra entre 17 candidatas, que decidiu manter o patrocínio e continuar a apoiar o livro, embora nesta versão amputada, e ao Instituto de História de Arte da Universidade de Lisboa, ao Centro Estudos de Comunicação e Cultura da Universidade Católica e ao Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical da Universidade Nova de Lisboa que se ofereceram para alojar e lançar este e-book.

Queira o leitor esclarecido paciente e benevolamente olhar para estas molduras vazias.

Dedicatória

a Maria

Índice

Prefácio de José-Augusto França

1. Unidade e Metamorfose duma Casa polifónica

2. Crónica de uma reabilitação anunciada

3. O Mito de Psique: um breve excursus através dos símbolos.

4. Uma arquitectura dissimuladamente racional. Psique e a harmonia dos opostos

5. O hortus conclusus de António Varela: a viagem botânico-simbólica de Psique.

6. Um Portal exotérico. A iniciação de Psique.

7. O Portal esotérico. A dupla queda de Psique, ou a descida da alma na consciência

8. A Estrela interior, ou a regeneração de Psique

9. Um Vitral enigmático. A junção-disjunção de Psique com Eros

9.1 Um par andrógino

9.2 A morte não é o fim

9.3 Ver é Saber

9.4 Duvido ergo sum

9.5. Uma localização particular. As cores do vitral

9.6 As medidas do vitral

9.7 A queda do herói: Psique, Narciso, Ícaro e Prometeu.

10. A Parede Sudoeste: a maternidade de Psique

11. Eros e Psique sob as máscaras

12. Eros e Psique no vórtice da dança

13. Mistério e maestria duma assinatura

14. Três personagens em busca de um autor

14.1 António Jorge Rodrigues Varela

14.2 António Luís do Amaral Branco de Paiva

14.3 José Sobral de Almada Negreiros

14.4 José Manuel Mota Gomes Fróis Ferrão

Bibliografia

Elenco das Imagens

Prefácio

… Assim uma peça importante dá entrada nas obras completas de Almada Negreiros, em que andava esquecida ou ignorada.
Teve um acaso feliz esta entrada, que foi de salvamento também, de uma arquitectura votada à perdição patrimonial.
Depois da triste demolição, em Janeiro de 2005, do palacete romântico em que Garrett faleceu, à Estrela, foi possível a outra vereação mais esclarecida e digna de confiança, sob a presidência de António Costa, evitar outra danosa destruição do património lisboeta, pondo em classificação, em 2009, uma moradia modernista ao Restelo, que ia ser demolida e substituída por outro prédio de casas.

Da autoria do arquitecto António Varela nos anos ‘50, projecto de 1951-1955, termo da obra em 1955, a moradia fora revelada por Ana Tostões na sua obra sobre os Verdes Anos da Arquitectura Portuguesa nos Anos ‘50, em 1997, como peça importante e típica, envolvida por um jardim e contendo decorações de azulejo e vitral de Almada Negreiros. No desfazer do edifício, um vitral fora desmontado e felizmente adquirido para colecção da Assembleia da República, em 2001, supondo-se então, num catálogo de leiloeiro, tratar-se da figuração da “Queda de Ícaro”.
Outras peças, de pintura, tapeçaria ou escultura foram dispersas – mas os azulejos continuavam ainda nas paredes, aguardando destino mercantil, mais do que um conjunto de relevos de escultura, de António Paiva que haviam de ter destruição ocorrente.
Um largo movimento de opinião, tendente à salvação da casa, falhado por oportunas influências políticas do proprietário promotor, no caso do palacete de Garrett, teve ouvido responsável na administração municipal, e a obra, na sua totalidade artística, pode ser preservada e provavelmente recuperada – mesmo que, por efeito negocial, o novo proprietário seja autorizado a acrescentar-lhe outro corpo arquitectónico, em duvidosa deontologia por não ter assentimento do arquitecto-autor, falecido em 1963, sete anos antes de Almada Negreiros – e trinta antes do proprietário da casa, o poeta José Manuel Mota Gomes Fróis Ferrão, nascido em 1928.
Estranho proprietário este, homem de fortuna, vivendo com sua mãe, amigo do seu arquitecto e do seu escultor, e de Almada, em grandes frequências, autor de dez livros de poemas, entre 1944 e 1964, de limitadas tiragens e que se perderam bibliograficamente, sem registos de história ou de crítica que ao autor eram certamente indiferentes… Poeta precioso, num simbolismo esotérico, José Manuel (como assinava), dirigiu, ao mesmo tempo que fazia a sua casa, entre 1951 e 1958, quinze números de uma revista de pouco público também, “Eros” – que eu fui lendo na altura…
A Casa, como a poesia, reservava-a ele para poucos e escolhidos amigos, vivendo (é título seu) numa “Alquimia do sonho” que, à sua volta, os espaços internos, e externos também do jardim simbolizado, e as figuras pintadas ou na transparência do vitral de “Eros e Psique”, iluminavam. Apuleio, sim, por evidência, mas também Almada que, em 1949, escreveu os quatro quadros dramáticos do “Mito de Psique” – tendo perdido o último, que a Psique se referia…
Entre a poesia de José Manuel e a poesia pintada ou escrita de Almada, há um encontro vivo, nas linhas do qual se perdem e ganham as referências da casa do Restelo. Ou as suas vivências.

Estudioso da arquitectura moderna, só conheci e mal a casa por fora, melhor me referindo a Ana Tostões; estudioso de Almada, nunca pude visitá-la por dentro – aprendendo agora, com Barbara Aniello, o valor especial da sua decoração. Em 1952, realizando uma exposição de Almada, que há dez anos não expunha, recolhi, sem menção no catálogo, “gouaches” que à moradia em questão já diziam respeito – mais longe não fui (como devia) escrevendo sobre o pintor, em 1974. E as grandes exposições que se realizaram, em 1984 e 1993 do núcleo em questão não se ocuparam.
Coube agora fazê-lo a Barbara Aniello, já com identificação do tema do vitral creditado, em 2007 e 2009, a Cátia Mourão. Para os trabalhos em questão, Barbara Aniello, em boa hora fixada em Lisboa, em 2005, com projectos co-universitários, tem a seu favor uma sólida cultura clássica que lhe vem de doutoramento italiano, em Pádua, depois de uma licenciatura na “La Sapienza” de Roma, dobrados de competência musicológica (e de violoncelista já de longa prática) – que, por exemplo, a levou a um recente e notável estudo da poesia de Jorge de Sena que muito enriqueceu o seu aprofundamento estético.

À parede incisa do “Começar” de Almada Negreiros, por seu lado, dedicou Barbara Aniello uma interessantíssima investigação publicada em 2007.
Através dela a conheci pessoalmente, à vontade ficando para lhe opor reservas, não ao seu excelente trabalho, em si próprio, mas de adequação, na suposição, pela autora assumida, de o artista dispor das referências culturais que ela aponta, para esta obra – que ambos sabemos ser obra maior, na poética portuguesa, testamento espiritual de Almada, “Da Capo”, achei eu, de toda a sua obra. Ou seja da sua vida…
O trabalho sobre a casa do Restelo, conheci-o depois, quando, em Maio de 2009, me enviou cópia do manuscrito convidando-me para um prefácio – que aqui escrevo. Ao mesmo tempo, a autora confiou cópia dele ao Arquitecto José Almada Negreiros, meu amigo de muitos anos por natural via paterna e que agora tive o desgosto de perder – e entrou numa longa corrida de obstáculos para encontrar editor de uma obra de produção necessariamente onerosa, e então intervim, amistosamente, de França, junto do filho Almada, para ele diminuir os direitos de autor das reproduções indispensáveis.
A obra pode sair agora “on-line” por urgência de condições de subsídio da Fundação Gulbenkian, sem a devida apresentação gráfica. Um artigo já saiu (com atraso do número 30) na revista Monumentos – protegida a autora por um registo legal do texto, feito em 3 de Julho de 2009, no I.G.A.C.- Inspecção Geral das Actividades Culturais. Coisa rara num país descuidado como o nosso — mas às vezes necessária. E, como escreveu o próprio Almada, a propósito de idêntica precaução de obra sua, em 1950: “Fizeram isto de mim”…

*

A obra de Barbara Aniello vai entrar na bibliografia almadina como peça de grande valor, na coincidência da salvação das próprias obras do artista, na casa para a qual foram criadas.
É a globalidade da casa que interessa à investigadora, e os seus quatro autores: o poeta José Manuel, o arquitecto António Varela, o pintor Almada Negreiros e o escultor António Paiva, nas devidas proporções das suas intervenções e das suas responsabilidades no programa. Entre poetas, passou a corrente de criação que interessa seguir nesta obra ímpar na arte portuguesa de meados do século XX, e de tão grande importância na maturidade de Almada – e no sentido geral da sua obra.

Não cabe a um prefaciador criticar ou discutir o próprio livro que deve limitar-se a introduzir na sua espécie, assegurando, por sua opinião, os valores que ele carreia.
Barbara Aniello percorre a casa abrindo-lhe as portas com a sua chave esotérica. “Metáfora do mito de Psique” num “tema com variações” que afirma de entrada, epigrafando o primeiro capítulo com citações do “romance poemático” de José Manuel, em 1953 publicado, e escrito que fora, antes, em 1949, “O Mito de Psique” de Almada, sublinha o prefaciador. Que entre os dois textos teve sem dúvida nascimento esta casa propositada. Considerando também outro, de dois anos anterior, que o filosofo Eudoro de Sousa dedicou a Almada, na revista “Atlântico”, por efeito do longo convívio havido entre ele e o artista. Fonte primeira, possivelmente, na exegese da autora, que importa registar para bom entendimento do que se passou – entre um filósofo, um artista e um poeta, com a colaboração maior do arquitecto… obra assim global …

De certo modo, é o romance da casa do Restelo que, entre exegese e ekfrase, Barbara Aniello conta, atenta aos mais escondidos pormenores – da plantação do jardim à planta do edifício, da porta de entrada, com esculturas de António Paiva, exotérica essa, para acolhimento do visitante, e articulada a outro portal, de azulejos almadinos, já esotericamente considerados – para a autora “preludio” ao “Começar” final do artista. E porque não, se ele bem sabia e disse tê-lo feito ao longo de toda a sua vida?...
E a tudo o mais que a casa contém programadamente sempre, na cumplicidade estabelecida e decerto exigida pelo seu encomendador, o poeta José Manuel, empenhado em “transformar o mito poético (de Psique) em realidade” de pedra e cal. Ele próprio assim escreveu, no último número da sua revista “Eros”, em Dezembro de 1958 – terminada a casa que ao início da revista fora projectada. No que deve reparar-se também.
Virada a Noroeste, numa parede da biblioteca preciosa do proprietário, o vitral (que em mãos mercantis perdera o título, que para elas não podia servir – como para os proprietários da embargada demolição…) resume, no seu encontro dramático, de fatal curiosidade, o mito narrado, de Eros e Psique, que deu luz a esta “casa polifónica”…

Alheio a polémicas, intrigas ou historietas, este livro vai cumprir o seu propósito de apresentar uma obra única na história da arte moderna portuguesa.



Jarzé, Novembro 2009



José-Augusto França

Professor Jubilado
Universidade Nova de Lisboa

Epígrafes

A Casa da Rua de Alcolena

História, Mistério, Símbolo


Ir ao encontro de um cânone. Eis a razão fundamental de todo o meu trabalho[1]

Há um ritmo nas cousas aparentemente sem nexo[2]

O que eu procuro é o mistério incessante da vida e do sonho, a grande aventura quotidiana, a multiplicação das Imagens e dos ritmos.[3]

Quero que todos saibam: procuro fundir a vida com a arte.
Procuro a vida na arte e a arte na vida.[4]



[1] José de Almada Negreiros, Assim Fala Geometria, entrevistas em série, conduzidas por António Valdemar, Diário de Notícias, Lisboa, 9-6-1960, p. 15.
[2] José Manuel, Alquimia do sonho: romance poemático, Lisboa, Tipografia Ideal, 1953, p. 15.
[3] Ibidem, p. 51.
[4] Ibidem, p. 52.

1. Unidade e Metamorfose duma Casa polifónica.

A moradia situada na Rua de Alcolena nº28/44 constitui um dos mais raros e belos exemplos de diálogo inter-artes em Portugal no século XX. A residência, integrada no Bairro da Encosta da Ajuda, dito Bairro do Restelo, projectada em 1951-1955 por António Varela para Maria da Piedade Figueiredo Mota Gomes e para o seu filho José Manuel Mota Gomes Fróis Ferrão, integrava onze paredes revestidas de azulejos e um vitral da autoria de José de Almada Negreiros, uma escultura e dez baixos-relevos de António Paiva e, na sua origem, um conjunto de pinturas, tapeçarias, esculturas, para o interior da casa, sucessivamente disperso em leilões. Belíssimo vestígio de arquitectura modernista, recentemente a casa foi objecto de candente actualidade, tendo sido alvo de um projecto de destruição com parcial remoção dos painéis em azulejo.

A íntima correspondência entre arquitectura e decoração, fruto duma extraordinária colaboração entre artistas e proprietários, resulta numa obra de arte que constitui um unicum, não só pela sua vocação inter-artística, mas também pelo programa unitário e pela linguagem comum nela revelados.

Da leitura integrada das suas várias componentes artísticas, emerge que a casa é uma metáfora do mito de Psique, contendo um conto coeso e coerente, quase um Tema com Variações, das suas metamorfoses. Psique está, segundo a nossa leitura, alegoricamente presente em todas as obras plásticas que adornam a residência, enfatizando alternadamente o tema da queda, da visão ou contemplação divina, do conhecimento superior (gnose) e da iniciação aos mistérios com ele relacionados. Com base nestas premissas, o presente estudo envolverá questões de exegese[1] e de ekphrasis,[2] à procura por um lado das fontes literárias na raiz do seu programa iconográfico e, por outro, dos textos inspirados nas obras figurativas, uma vez realizadas. Ao longo deste percurso traçar-se-á uma dupla análise da habitação e das obras nela contidas, discernindo entre uma componente exotérica e uma esotérica,[3] com o intuito de identificar acessos e zonas destinadas à recepção dos visitantes e zonas reservadas a um restrito grupo de amigos e colaboradores do proprietário.

[1] O termo exegese deriva do grego e é composto por ek (de, fora) e egéomai (tiro, conduzo) e indica o trabalho de ex-trair, ex-ternar, ex-por o significado profundo dum texto, literário, jurídico, religioso, visando a sua interpretação profunda.
[2] O termo ekphrasis vem do grego e é composto por ek (de) e phrazein (falar), indicando literalmente um “falar de”, “falar a partir de” um modelo. Trata-se dum processo típico da descrição, que tem raízes clássicas, tal como lembra, na sua Ars Retórica, Dionísio de Halicarnasso. A história do termo ekphrasis tem sido acompanhada por Carlos Ceia no seu E-Dicionário de termos literários: “O termo ekphrasis tornou-se um exercício escolar para aprender a fazer descrições de pessoas ou lugares. O locus classicus na literatura épica é a descrição do escudo de Aquiles feita por Homero (Ilíada, 18, 483-608). Virgílio seguiu o mesmo modelo para a descrição do escudo de Eneias na Eneida (8, 626-731). Um outro tipo de ekphrasis concentra-se em descrições epigramáticas de pinturas e estátuas, como La galeria de Marino e muita poesia emblemática. O termo alemão Bildgedicht corresponde praticamente ao conceito de ekphrasis, neste sentido de descrição de uma obra de arte (pintura ou escultura). Os poetas românticos recorreram amiúde a este artifício, tendo ficado célebre, por exemplo, a "Ode on a Grecian Urn", de Keats. Naturalmente, o recurso às descrições particulares está presente em muita poesia contemporânea, sobretudo a partir do momento em que a poesia se tornou cada vez mais próxima da prosa narrativa. Na literatura portuguesa, o livro Metamorfoses (1963), de Jorge de Sena introduz um tipo de poesia descritiva que tem como objecto de contemplação toda a obra de arte visual. Este tipo de descrição plástica não limita o conceito de ekphrasis a uma simples e passiva exposição dos dados observados, mas conduz-nos a um exercício reconstrutivo do que foi examinado, querendo interferir subjectivamente nas qualidades do objecto. O poeta ecfrástico raramente se contenta com uma descrição objectiva do que observa, quando tem a possibilidade de comunicar livremente o seu próprio gosto. A Secreta Vida das Imagens (1991), de Al Berto, ou Depois de Ver (1995), de Pedro Tamen, podem ilustrar o lado dinâmico da ekphrasis”. Cfr. http://www2.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/E/ekphrasis.htm. Veja-se também: Emilie L. Bergmann: Art Inscribed: Essays on Ekphrasis in Spanish Golden Age Poetry (1979); Fernando J. B. Martinho: “Ver e depois: a poesia ecfrástica em Pedro Tamen”, Colóquio-Letras, 140/141 (1996); Maria Fernanda Conrado: Ekphrasis e Bildgedicht: processos ekphrásticos nas metamorfoses de Jorge de Sena, Tese de mestrado, Universidade de Lisboa (1996); Murray Krieger: Ekphrasis: The Illusion of the Natural Sign (1992).
[3] A diferença entre os termos exotérico e esotérico deriva da filosofia de Pitágoras que distinguia no seu ensinamento entre um saber acessível a todos, visível, comum, popular (éx = fora) e um conhecimento reservado a poucos eleitos, (eso = dentro). Assim os seus discípulos eram designados e distinguidos entre exotéricos, ou alunos externos à sua escola, e esotéricos, os alunos admitidos no interior da sua escola, os únicos que podiam ver e ouvir as aulas do filósofo. Entre estes havia uma ulterior distinção entre esotéricos-acousmáticos, que podiam só ouvir o Mestre, e esotérico-matemáticos, que tinham o privilégio de argumentar com ele e também ensinar aos acousmáticos. O presente estudo pretende utilizar esta definição, com o intuito de distinguir entre uma componente explícita, divulgativa, exposta e uma mais reservada, íntima, privada, na fruição da casa.

2. Crónica de uma reabilitação anunciada.[1]

A moradia pertence ao Bairro da Encosta de Ajuda, planeado e desenhado por Faria da Costa no espírito da cidade-jardim, emoldurado a Norte pela zona verde de Monsanto e a Sul pelo rio Tejo.

1. Casa da Rua Alcolena, Fotografia satélite, vista aérea, Google Maps.

Desde a sua edificação a Casa passou por vários proprietários. A construção do edifício deve-se ao arquitecto António Varela, depois da aquisição por Maria da Piedade Figueiredo Mota Gomes do lote de terreno nº149, com uma área total de 1122 metros quadrados, à Câmara Municipal de Lisboa em Agosto de 1951, parte por compra directa e parte por arrematação em hasta pública. Concluídas as obras, em 10 de Fevereiro de 1954, o imóvel manteve-se na posse da primeira proprietária, passando em 1981, após a sua morte, para o seu filho José Manuel Mota Gomes Fróis Ferrão. Depois do falecimento deste, a moradia passou para a viúva e para as suas quatro filhas, que a venderam em 2002 à imobiliária Espácimo. Três anos mais tarde, a nova proprietária viu a residência do Restelo ser objecto de sucessivas penhoras, acabando por vendê-la em Janeiro de 2007, a uma outra imobiliária: a Principado do Restelo, com sede em Cascais. No dia 5 de Janeiro desse ano, verificou-se uma nova transferência de propriedade, desta vez para a Soindol, Sociedade de Investimentos Dominiais Lda., que comprou o imóvel por um milhão e 750 mil euros. Três semanas depois, no dia 29 de Janeiro de 2009, os novos proprietários entregaram na Câmara Municipal de Lisboa o pedido de licenciamento da demolição integral da casa e da construção de uma nova moradia familiar de grandes dimensões, com uma área total de 1534 metros quadrados. Sucessivamente, no âmbito das condições negociadas com os anteriores proprietários, parte dos azulejos foram removidos. Depois das denúncias à Comunicação Social feitas pelos herdeiros de José de Almada Negreiros, nomeadamente seu filho o Arquitecto José de Almada Negreiros e as netas Rita e Catarina, por Helena Roseta, Vereadora do Movimento “Cidadãos por Lisboa”, e por João Rodeia, presidente da Ordem dos Arquitectos,[2] a Câmara de Lisboa embargou, em 23.02.2009, a retirada dos painéis de azulejos da autoria de Almada Negreiros. Em particular, Helena Roseta defendeu a integridade da Casa: “a remoção é uma destruição do património. Trata-se de um imóvel (no seu todo, incluindo os painéis de azulejos) representativo da produção arquitectónica moderna portuguesa dos anos 50 na cidade de Lisboa, que interessa salvaguardar enquanto testemunho da qualidade da conjugação e integração de artes e ainda como documento qualificado de uma fase do desenvolvimento da cidade de Lisboa e da diversidade do seu tipo de ocupação arquitectónica.”[3] Confrontado com o início da remoção dos azulejos, antes de qualquer decisão sobre os projectos apresentados, o vereador do Urbanismo, o Arquitecto Manuel Salgado, determinou de imediato o embargo dos trabalhos. A moradia está inserida na Zona de Protecção Especial de vários imóveis classificados (Capela de São Jerónimo, Capela de Santo Cristo e dois palacetes da Rua de Pedrouços), razão pela qual todas as obras ali efectuadas têm de ser previamente aprovadas pelo Igespar (Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico). Os painéis de Almada estão classificados no inventário municipal do património com a designação de património integrado, ou seja, toda a construção está protegida e o conjunto de azulejos é inamovível, afirma o director daquele Instituto, Elísio Summavielle. A Casa está citada também num levantamento da arquitectura do século XX, realizado pela Ordem dos Arquitectos e está incluída na lista do Docomomo, organização que subsidia a documentação e conservação das manifestações do movimento moderno em arquitectura. Segundo a vice-presidente da Ordem dos Arquitectos e do Docomomo Ibérico, Ana Tostões, os azulejos desta moradia são “especiais”, uma vez que se inserem num período criativo de Almada Negreiros que antecipa o trabalho gravado na pedra no átrio da Gulbenkian, o painel Começar, 1968-1969. O processo de classificação como bem cultural de interesse municipal já foi iniciado pela Vereadora do Movimento “Cidadãos por Lisboa”, Helena Roseta, com uma proposta apresentada em 18 de Fevereiro de 2009, que inclui também a criação de um projecto-piloto de casa-museu-atelier de artes plásticas e dum catálogo-roteiro da Casa. Em resposta a este apelo surge o presente estudo, na esperança de ajudar a restituir à Casa da Rua de Alcolena o seu justo lugar no panorama histórico-artístico nacional e internacional.

Em Julho de 2009 a polícia esteve a vigiar a casa, 24 horas por dia, para evitar episódios de remoção ilegal dos azulejos e eventual vandalização do interior da casa, dado o historial recente. Contudo, em meados de Julho 2009, a Moradia foi arrombada outra vez e a polícia está a verificar danos e eventuais despojamentos.[4]

No dia 9 de Agosto foi aprovada pela Câmara Municipal de Lisboa uma proposta do ateliê Massapina, subscrita pelo Vereador Manuel Salgado, para a alteração e ampliação do prédio, que não só anula a continuidade do simbólico jardim, mas apaga o alçado sudeste da Casa, cancelando a sua perspectiva geométrica, o seu valor cúbico, a sua metafórica orientação.

No curso da nossa atribulada investigação, chegou-nos a feliz notícia que em 2 de Dezembro de 2009 a Casa foi classificada como Imóvel de Interesse Municipal.

Gostaríamos muito de assistir ao renascimento da Casa como Centro de Estudos Permanente do Modernismo Português e como casa-museu-atelier de artes plásticas. Dada a sua riqueza inter-artística, a sua colocação no panorama histórico e geográfico de Lisboa, a sua unicidade e unidade, esta Casa extra-ordinária corresponderia perfeitamente à vocação de acolher um Centro de Estudo Permanente de um dos períodos artísticos mais interessantes e com projecção internacional da História da Arte Portuguesa.

[1] A história da casa foi relatada por José António Cerejo e Maria José Oliveira a Inês Boaventura num artigo publicado no Público, em 21.02.2009 e em 25.02.2009, e por Luísa Botinas no Diário de Notícias de 20.02.2009. Para uma bibliografia sobre a Casa veja-se Ana Tostões, Os verdes anos da arquitectura portuguesa nos anos 50, Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, Porto, 1997, p. 60; Fátima Cordeiro Ferreira coord.; José Silva Carvalho; Teresa Nunes da Ponte; Filipe Jorge Silva, Guia Urbanístico e Arquitectónico de Lisboa, Associação dos Arquitectos Portugueses, 1987; Helena Roseta, João Afonso, Joana Morais, Manuel Távora, IAPXX-Inquérito à Arquitectura do Século XX em Portugal, Ordem dos Arquitectos, 2003; Inventário Docomomo Ibérico da Habitação, 2008. Vide também: Obra 23293, Processos 1951, 22260/1955, 15454/1981, Arquivo Câmara Municipal de Lisboa. A Ordem dos Arquitectos promoveu uma petição para salvar a moradia que atingiu até hoje cerca de 5000 assinaturas: http://www.petitiononline.com/Alcolena. Cfr. também a proposta do movimento Cidadãos por Lisboa: http://www.cidadaosporlisboa.org/?no=50400001519,053, apresentada em 18 de Fevereiro de 2009.
[2] Diário de Notícias, Lisboa, 20 de Fevereiro de 2009, p. 28.
[3] Diário de Noticias, Lisboa, 3 de Março de 2009.
[4] Público, 21 de Julho de 2009.

3. O Mito de Psique: um breve excursus através dos símbolos.[1]

Era uma vez um rei e uma rainha que tinham uma filha de rara beleza de nome Psique. Tão grande era a sua fama que os homens começaram a adorá-la, descuidando os rituais de Vénus. Esta, invejosa, planeou vingar-se, enviando o seu filho Eros com o intuito de a fazer apaixonar-se pelo ser mais horrível da terra. Entretanto, Psique lamentava a sua solidão, ao contrário das irmãs, que já se tinham casado. Vítima da sua própria beleza parecia, aos olhos dos mortais, inatingível pelo amor dum homem. Porém um ainda mais mísero destino lhe reservava o futuro: o Oráculo preanunciara que, num lugar terrível, a donzela haveria de celebrar es­ponsais fúnebres com um monstro que enchia de horror os pró­prios deuses. Psique, acompanhada por todo o povo em pranto, submeteu-se ao seu Fado e foi, com passos firmes, ao encontro do drama da sua existência. Do alto de um rochedo desceu a um vale delicioso onde se erguia um palá­cio encantado. Vozes de corpos invisí­veis convidaram-na a sentar-se à mesa nupcial e, chegada a noite, recebeu em seu leito o incógnito amante. Ele advertiu-a dos horríveis tormentos que teria que sofrer, se confiasse na perfídia das irmãs mais que nas delícias da hora presente. Eros,­ que outro não era senão o nocturno visitante, diante de tanta beleza, tinha decidido desobedecer à mãe e, desistindo da vingança, substitui-se ao monstro, espetando-se nas próprias flechas e apaixonando-se perdidamente por Psique. Alertando a sua amante para não dar ouvidos às insídias das irmãs, que a iriam aconselhar a examinar o seu semblante, disse Amor, ou seja Eros, em relação ao seu rosto: “se uma vez o vires, nunca mais o verás”. Sucessivamente, como para lhe mitigar o tormento, Eros anunciou a Psique a sua iminente maternidade, mas acrescentou “se guardares o nosso segredo em silêncio, o nosso filho será divino; se o divulgares, será mortal”. O Fado cumpriu-se. A inveja e a per­versidade das irmãs levaram Psique a ignorar os avisos do seu terno amante e uma noite, à luz clara e brilhante duma lucerna cheia de azeite, a miserável aproximou-se do leito onde julgava que dormisse o terrível monstro e pôs-se a perscrutar o seu vulto. Mas para sua grande surpresa Psique, que não se contentava com o seu amor cego, descobriu a imagem sublime do deus adormecido. Resultado da visão, Psique estremeceu e o seu corpo ardeu, como a luz da lucerna, rasgando o véu da noite. De­pois, insaciável, levou-a a curiosidade a tocar nas armas que jaziam aos pés do leito e, de mãos ainda frementes, feriu-se nas setas do poderoso deus: “assim a ignorante Psique se inflamou de amor por Amor”. É então que uma gota ardente da lucerna caiu no ombro da divindade, que despertou e desapareceu, não cuidando da sua própria ferida. Este é o primeiro momento crítico no drama de Psique. Desde então, vítima de si mesma, a Alma, ou seja Psique, passará toda a sua existência condenada a um va­guear inquieto pelo mundo em busca daquele Amor que a desobediência lhe arrancou. Psique, depois de ter recorrido em vão a Ceres e a Juno, caiu em poder de Vénus, que já então a procurava, não só pela an­tiga afronta, como também pela vin­gança frustrada. Não correspondendo às súplicas da jovem, Vénus impôs-lhe tarefas superiores às possibilidades humanas, tais como: separar um monte de sementes diversas, trazer lã dos car­neiros do Sol, ir em busca da água estígia e, enfim, descer aos infernos para de lá trazer num frasco um pouco da formosura de Prosérpina. Em todas estas provas a Alma foi assistida por Amor que lhe prestou o auxílio necessário ao bom êxito das provas. As formigas separaram as sementes numa noite de labor; uma “cana viçosa, suave criadora de música”, aconselhou-a a esconder-se dos ardores do Sol; a águia, “ave real do supremo Jove”, encheu a urna de água estígia; a torre, donde Psique intentou atirar-se para “ir ter directamente aos infernos”, en­sinou-lhe o caminho e proporcionou-lhe o viático; e, quando no regresso a invadiu “um sono infernal e verdadeiramente estígio”, por, mais uma vez, não ter resistido à curiosidade de abrir o frasco, é o próprio Eros que acorre, “limpando cuidadosamen­te o sono e desperta Psique com o inocente toque da ponta de uma das suas setas”. Este despertar é outro momento crí­tico no drama de Psique. Mas o se­gundo ferimento das setas de Amor conferiu-lhe a imortalidade e o gozo pleno da união perfeita com o divino esposo.

Todos os momentos-chave e os eventos críticos do mito estão dramática e simbolicamente representados na Casa da Rua de Alcolena.

[1] Toda a narração é retirada de Eudoro de Sousa, Quem vê Deus, morre... : o mito de psique, sep. do Atlântico, n. 5, Lisboa, 1947, pp. 1-17. O texto que concerne o mito de Psique, pp. 5-7, aqui readaptado e resumido, foi dedicado a José de Almada Negreiros e publicado exactamente quatro anos antes do primeiro projecto de construção da residência da Rua Alcolena, na sequência dum longo convívio que o professor, filósofo, pedagogo, filólogo, mitólogo teve com o artista. Segundo Joaquim Domingues foi o contacto com Almada Negreiros e Santana Dionísio que despertou em Eudoro de Sousa o interesse pelo simbólico, como “síntese sensível da ideia unitária e universal”. Cfr. De Ourique ao Quinto Império. Para uma Filosofia da Cultura Portuguesa, Lisboa, INCM, 2002. Pela profunda interligação entre a interpretação sousiana do mito e a representação do mesmo no vitral da autoria de Almada Negreiros que ornava a casa, e dada a anterioridade do texto face ao projecto da casa, julgamos importante referir esta fonte e não outras, como fonte iconográfica privilegiada da obra. Vide também Luís Loia, O Essencial sobre Eudoro de Sousa, INCM, Lisboa, 2007.

4. Uma arquitectura dissimuladamente racional. Psique e a harmonia dos opostos.

Começando pela implantação da Casa, notamos que esta é originada pela junção desfasada de um quadrado e um rectângulo, formando uma figura geométrica irregular, testemunho de uma plasticidade típica do racionalismo do Movimento Moderno.


2. António Varela, Obra 23293, Processo 35792/1951, Folha 14, Arquivo Municipal de Lisboa.

Como se lê na memória descritiva da Casa, redigida pelo arquitecto António Varela, a estrutura articula-se em três pisos: a cave, com as dependências destinadas ao pessoal de serviço, a arrumos e à instalação de equipamento de aquecimento-chauffage e à água;


3. António Varela, Obra 23293, Processo 35792/1951, Folha 52, Arquivo Municipal de Lisboa.

o rés-do-chão para as dependências destinadas às necessidades da vida quotidiana: zonas de recepção, estar, refeições, fruição de espaço;


4. António Varela, Obra 23293, Processo 35792/1951, Folha 52, Arquivo Municipal de Lisboa.

o primeiro andar destinado ao repouso e recolhimento dos proprietários, coroado por um terraço com vista panorâmica sobre o Tejo.[1]


5. António Varela, Obra 23293, Processo 35792/1951, Folha 52, Arquivo Municipal de Lisboa.

Quanto ao aspecto exterior da casa, notar-se-á que o alçado se ergue numa posição sobrelevada em relação à rua. A moradia é abraçada por um vasto jardim, que emoldura a construção, atenuando a sua aparência abstracto-geométrica e o seu purismo volumétrico. Notamos uma preocupação simétrica na disposição da garagem, com duplas janelas e duplas escadas, especularmente à esquerda e direita, contradita da solução arquitectónica, deslocada ligeiramente à direita do eixo vertical sugerido pelo acesso da rua ao jardim. A coincidência desta preferência pela assimetria, no ideário do arquitecto, do proprietário e do pintor é bastante singular, como explicaremos adiante.


6. Vista principal, virada a Sudoeste, da Casa da Rua de Alcolena. Fotografia©Paulo Cintra, Novembro 2008.

Através dum jogo entre claro e escuro, cheio e vazio, duro e mole, mineral e vegetal, deparamo-nos com um tapete em xadrez disseminado na encosta do terreno sobrelevado e realizado com quadrados de pedra calcária, alternados com porções de idêntica dimensão de terra, anteriormente arrelvadas. O padrão axadrezado prolonga-se no muro que delimita o confim esquerdo da moradia. Confrontando as fotografias antigas do muro da casa com as actuais, notar-se-á um idêntico claro-escuro que repetia originariamente a alternância patente na entrada.


7. Fotografia antiga da Casa. Espólio Varela. Fotografia©Paulo Cintra, Novembro 2008.

Da análise das fotografias antigas da casa, emerge um surpreendente duplo tapete de xadrez: à manifesta alternância lúcido-opaco dos cubos em pedra e relvado, junta-se o jogo em claro-escuro dos seixos brancos e acinzentados. Desenha-se, assim, por sobreposição, uma impressão óptica de dois xadrezes: um em primeiro plano, de pedra-relva, manifestamente claro, e um em segundo plano, de pedra-pedra, formando um jogo bicromático mais encoberto e críptico: manifestação do duplo, exotérico e esotérico. Posteriormente, o muro foi repintado, apagando-se assim a continuidade do desenho em xadrez que fazia de elo entre o exterior e o interior, acompanhando a passagem do visitante desde a rua até à entrada.


8. Pormenor da Fotografia antiga da Casa. Espólio Varela. Fotografia©Paulo Cintra, Novembro 2008.

A alusão do pavimento-mosaico ao sagrado é evidente. Os quadrados lúcidos e opacos encaixam-se na bipolaridade luz-trevas, bem-mal, negativo-positivo, unidade-duplicidade, corpo-espírito. Essa bipolaridade está presente em toda a simbologia desta obra de arte que é a Casa. A complementaridade da cor branca e da cor preta, presente no templo sagrado e na entrada da moradia, reflecte a confluência entre activo e passivo, masculino e feminino, solar e terrestre, num intenso diálogo com a decoração interior e exterior da casa. Assim, a procura da harmonia cósmica passa, curiosamente, através dum disfarçado jogo com o “assumido radicalismo” dum volume “puro, cúbico, afirmativamente colocado no alto do terreno”, “com rigorosa geometria plasticamente trabalhada”[2], do edifício de António Varela.


9. Alçado Sudeste e Nordeste da Casa da Rua de Alcolena. Fotografia©Paulo Cintra, Novembro 2008.

Neste propositado diálogo entre irracional e racional, entre espírito e lógica, entre gnose (conhecimento intuitivo) e epistéme (conhecimento científico) é tecido o significado unitário de toda a obra. O pavimento, tal como a construção, simboliza a união entre o eixo vertical (celeste) e o eixo horizontal (terrestre), ou seja o Tempo e o Espaço, o Universal e o Particular.
Por isso mesmo, a construção, aparentemente racionalista, é na sua essência completamente mística, aderindo à componente esotérica de acordo com os interesses do comitente

A natureza odeia a monotonia, a simetria. O absoluto reflecte-se na alma e transfigura-se em inumeráveis formas, diferentes todas, semelhantes todas...[3]
Em qualquer dos casos o racionalismo é uma posição extrema, - quase patética. Tu sabes. Tudo era assimétrico em ti.[4]
e em coincidência com os de Almada também:
Este é o princípio da Simetria, palavra que não é grega, mas formada com duas palavras gregas (sim + métron = com medida), e não significa o que por ela correntemente se entende. A palavra grega que corresponde ao que devia ser a Simetria, e não o que por ela se entende, é Tekné. [5]
A simetria cujo nome verdadeiro é Magia Branca e em oposição a Magia Negra que é transcendentalista, não se resume à combinação das linhas simples ou à dos algarismos entre si […]
Chamando Magia Negra ao transcendentalismo, parecerá pejorativo, o caso é, porém, que o transcendentalismo tem artes para estar constantemente a sair da sua magia negra […]
O transcendente é indubitavelmente o despertador dos longos letargos humanos, mas os marcos no caminho do Homem vão sendo postos em seguimento, pessoa em pessoa, pela simetria.
Tudo quanto se passou no mundo, se passa e se passará, é o desta dualidade humana da simetria e do transcendente.[6]
Significativa é, nesse contexto, a declaração de José Manuel Ferrão[7] acerca da predilecção pelo natural-assimétrico face ao racionalismo-simétrico.

António Varela terá tido em consideração os gostos do proprietário, optando por uma estrutura veladamente racionalista e sensivelmente assimétrica. De acordo com o proprietário e o arquitecto, Almada privilegia uma estética “outra”, diferente, procurando na “assimetria” o transcendente e na “simetria” a relação entre as partes e o Todo.

Almada procurará na sua última obra, Começar, 1968-1969, verdadeiro testamento gravado na pedra do átrio da Fundação Gulbenkian, uma Simetria sensível, uma Medida secreta, uma Cifra pessoal, desenhando no centro um Pentalfa e realizando uma simetria assimétrica, onde a estrela ocupa um lugar mais à esquerda do ponto de intersecção das diagonais com origem nas extremidades do painel.[8]

É significativo que num contexto como o da casa, tecido em torno do mito de Psique, Almada diga que o transcendente, ou a assimetria, é “despertador dos longos letargos humanos”, de acordo com o tema do vitral por ele concebido sob encomenda de José Manuel.

Mais ainda. Na escadaria de entrada, perto da assinatura do Arquitecto António Varela, com a data de inauguração e dedicatória da Casa, coincidente com o aniversário do filho da proprietária, 10 de Fevereiro de 1954, encontra-se uma outra inscrição que reporta a frase de Paul Éluard: La maison s’éleva comme un arbre fleurit, referência programática ao significado simbólico da construção.



10. e 11. Epígrafes com citação de Paul Éluard e assinatura do Arquitecto com data. Fotografia©Paulo Cintra, Novembro 2008.

Colocada numa cota de terreno sobrelevada, a Casa ergue-se em relação ao nível da rua, mas ergue-se ao contrário, de cima para baixo, como uma árvore invertida: as raízes, que estão no alto, são representadas pelos respiradores e chaminés no terraço e as flores estão geometricamente “implantadas” no pavimento em mosaico na entrada do jardim. Desta maneira explicar-se-á a enigmática função duma chaminé fingida no terraço, que não tem qualquer ligação com o interior da casa,


12. Chaminé fingida no telhado da Moradia. Fotografia©Paulo Cintra, Novembro 2008.

como também do retículo do alçado Nordeste, que corresponde, no interior, à escada que liga os andares. O jogo rítmico e geometricamente trabalhado deste bordado remete, ao nível simbólico, para o desenho dum tronco de árvore.


13. Alçado Nordeste da Casa da Rua de Alcolena. Fotografia©Paulo Cintra, Novembro 2008.

A trama vegetal que percorre a escada é muito mais palpável nas alterações de 1955, que no desenho original de 1951:


14. António Varela, Obra 23293, Processo 2306/1955, Folha 11, Arquivo Municipal de Lisboa.


15. António Varela, Obra 23293, Processo 35792/1951, Folha 53, Arquivo Municipal de Lisboa.

É significativo encontrar no espólio familiar do proprietário uma foto de Dona Maria da Piedade, retratada em pose de inspiração poética, junto das duas inscrições. A referência à árvore, a assinatura do arquitecto e a imagem da proprietária estabelecem uma triangulação de significados e alusões filosóficas que não nos podem deixar indiferentes.

16. Dona Maria da Piedade. Fotografia gentilmente cedida por Madalena Ferrão. Espólio familiar. Fotografia©Paulo Cintra, Novembro 2008.

O símbolo da árvore invertida pertence ao Neoplatonismo esotérico e foi utilizado em muitas outras correntes espirituais. O seu esquema, com as raízes metafísicas viradas para o alto, o seu tronco único e os ramos voltados para baixo, mostra como todas as manifestações temporais e particulares estão ligadas a uma unidade universal. Tal como a Tábua esmeraldina, que recita o que está em cima é análogo ao que está em baixo, a árvore invertida sublinha uma reciprocidade entre o mundo das esferas e o mundo empírico. Todas as coisas materiais têm origem nas Ideias, ou seja, no Universal.

Curiosamente, entre os raros vestígios da obra do escultor António Paiva, que colaborou na decoração do portal principal, encontramos a imagem duma árvore invertida numa medalha cunhada em 1970[9] e no seu desenho preparatório:

17. António Paiva, Medalha em bronze, 80 mm, cunhada, 1970 para a Comissão de Construções Hospitalares, Hospital de Beja. Colecção particular. Fotografia de Barbara Aniello.



18. António Paiva, desenho preparatório para a Medalha em bronze, 80 mm, cunhada, 1970 para a Comissão de Construções Hospitalares, Hospital de Beja. Espólio Paiva. Fotografia de Barbara Aniello.

Em particular, no desenho o tronco e as raízes erguendo-se formam uma figura antropomorfa de braços estendidos em cruz.

A tentativa de harmonizar os opostos visualizados no pavimento em mosaico, na referência da inscrição à árvore, na arquitectura místico-racionalista, na colocação do edifício fora do eixo, corresponde ao simbólico acesso do iniciado, em busca da unidade perdida. A Alma, ou Psique, ao aproximar-se da casa, sente-se, graças a toda uma série de indícios, impulsionada a superar os obstáculos e as oposições derivadas do “Duplo”, claro-escuro, ortogonal-curvilíneo, simétrico-assimétrico, até, finalmente, compreender e alcançar a “Unidade”.

[1] Obra 23293, Processo 35792/1951, Arquivo Municipal de Lisboa. Cfr. também a petição on-line promovida pela Ordem dos Arquitectos «É preciso salvar a Casa da Rua Alcolena, da autoria do arquitecto António Varela, com murais de azulejo da autoria do pintor Almada Negreiros», http://www.petitiononline.com/Alcolena/, op. cit.
[2] Ana Tostões, op. cit., p. 60.
[3] José Manuel, Alquimia do sonho, op. cit., p. 35.
[4] Ibidem, p. 28.
[5] José de Almada Negreiros, Ver, notas e prefácio de Lima de Freitas, Lisboa, Arcádia, 1982, p. 84.
[6] Ibidem, pp. 86-87.
[7] O Dr. José Manuel Ferrão, poeta, artista, editor, músico, escolheu assinar os seus trabalhos com um simples “José Manuel”. Por isso, daqui em diante referir-nos-emos a ele apenas pela sua assinatura.
[8] Barbara Aniello, José de Almada Negreiros: do Caos à Estrela dançante, in "Artis", Revista do Instituto de História de Arte da Universidade de Lisboa, n. 6, Lisboa, 2007, p. 347.
[9] Devo à generosidade e disponibilidade do professor, escultor, coleccionador João Duarte a publicação destas medalhas de sua propriedade e a partilha de importantes notícias acerca da actividade de António Paiva, do qual chegou a ser aluno na Escola de Belas Artes nos anos 1974-1976. Cfr. João Duarte, Um percurso na medalha em Portugal, fotogr. José Viriato; concepção gráfica Andreia Pereira, Universidade de Lisboa, 2005, pp. 1-26.

5. O hortus conclusus de António Varela: a viagem botânico-simbólica de Psique no jardim de Alcolena.


19. Planta geral da Obra Rua de Alcolena, Lote 149, autografada por António Varela com indicação das plantas, árvores e elementos decorativos do jardim. Espólio Ferrão. Fotografia©Paulo Cintra, Novembro 2008.[1]

19A. Esquema a partir da Planta geral da Obra Rua de Alcolena, Lote 149, autografada por António Varela com indicação das plantas, árvores e elementos decorativos do jardim. Desenho de Barbara Aniello.

Superado o recinto sagrado, prelúdio ao acesso à casa, deparamo-nos com um vasto jardim que abraça e emoldura a construção, atenuando a sua aparência abstracto-geométrica. Da análise da planta original assinada pelo arquitecto, emerge uma atenta e ponderada escolha das plantas, árvores e elementos decorativos que, no meu entender, não é fruto duma elaboração casual ou meramente estética, mas sim dum sábio e ciente programa mitográfico-simbólico. Através do significado de cada árvore,[2] seguindo o seu intuito ou a sugestão de outrem, António Varela desenha botânica e simbolicamente a peregrinatio animae de Psique em busca de Eros. Assim, no mito como no jardim, podemos ler a história da Alma que, não contente com o seu amor cego, vítima da sua dúvida (representada pelos Oleandros) descobre a imagem sublime do amante adormecido, “inflama-se de amor por Amor” e, abandonada pelo amado, ela, que era destinada a ser deusa imortal, recai numa humana e mortal condição. A este primeiro momento crítico do drama corresponde uma árvore que pela sua longevidade e persistente verdura é duplamente alusiva à Morte e à Imortalidade (Ciprestes). Daqui em diante começa a peregrinação da Alma em busca do Amor perdido, não sem sofrimento e lágrimas (Salgueiro chorão).[3] A memória do amado (Alecrim do Norte) impulsiona Psique a enfrentar inúmeras provas, a última das quais é roubar o perfume a Perséfone. Vítima pela segunda vez da sua própria curiosidade, Psique abre o frasco e é invadida por “um sono infernal”. Esta segunda morte (Ciprestes) é o outro momento crí­tico no drama, mas desta vez é Eros a despertar Psique e a doar-lhe a imortalidade, como prémio pela sua perseverança (Magnólia). Neste sentido é particularmente indicativo o outro significado do Alecrim do Norte, resumido pela frase “a vossa presença me reanima”, devido ao cheiro que a planta exala.[4] A arquitectura do jardim contém um duplo nível de leitura, tornando visível, por um lado, o mito e as peregrinações de Psique, por outro, o conceito filosófico da viagem circular cumprida pela Alma na reincarnação. Neste roteiro botânico, debaixo dos véus da fabula, deciframos a teoria platónico-pitagórica da Metempsicose, segundo a qual a Alma reincarna em novas vidas, depois de ter mergulhado nas águas do Léthe, o rio do olvido que apaga a memória das vidas passadas. Ao Léthe, representado pelo espelho de água rectangular no lado sudoeste do jardim, corresponde no lado oposto o Eunoé, o rio da memória, citado por Dante na Comédia. O primeiro faz esquecer o Mal e os pecados passados, o segundo faz lembrar unicamente o Bem. Junto do Léthe, quebrando o itinerário circular das plantas, não por acaso está a Tuia, ou arbor vitae, cuja etimologia remete para o grego incenso, particularmente significativo num contexto de purificação, ascensão e reincarnação da Alma.

Os dois lagos poderiam também ter outro significado. De facto é num rio que, depois do abandono de Eros, a inconsolável Psique se tenta suicidar, mas as mesmas águas trazem-na para a margem até ao encontro com Pan que a convida a esquecer o passado, a procurar e ganhar novamente o amor de Eros. Daqui a coincidência entre o rio do olvido e a perseverança significada pela Magnólia. Por outro lado, o segundo lago poderia representar o rio Estíge, atravessado por Psique à procura de Perséfone, conhecido por ser rio da imortalidade, destino final da futura deusa.

As formas opostas dos dois lagos, geométrica-orgânica, ortogonal-curvilínea, masculina-feminina, aludem à coincidentia opositorum que percorre toda a iconografia da Casa. Em particular, a do espelho de água a Noroeste, em contraponto com os avanços e recuos das duas varandas exteriores, das escadas em semi-elipse interiores e dos dois grupos de Ciprestes, remete, como explicaremos mais adiante, para a dialéctica cheio-vazio, plenitude-escassez dos míticos progenitores de Eros, Poros e Pênia.

[1] Requereu a Senhora Dª. Madalena Ferrão que fosse referido que esta planta foi descoberta pela investigadora Cátia Mourão e pelo fotógrafo Paulo Cintra, aquando da visita ao espólio da família de José Manuel Ferrão e de Maria da Piedade Figueiredo Mota Gomes.
[2] Alain Gheerbrant, Jean Chevalier, Bernard Gandet, Dictionnaire des symboles: mythes, rêves, coutumes, gestes, formes, figures, couleurs, nombres, Paris: Robert Laffont, 1969, pp. 274 e 677.
[3] Na linguagem das flores, o Salgueiro-chorão indica sem dúvida a melancolia. Esta árvore remete também para a imagem de uma “amante desventurada”, que “parece murmurar sem cessar: é dos males o pior a ausência!” e que, exilada, está permanentemente em busca do amado. Cfr. Diccionario da linguagem das flores, Lisboa: Typ. Lusitana, 1868, pp. 46-47.
[4] Ibidem, p. 15. Além destes significados, o Alecrim do Norte representa também “o amor fiel”, vide Diccionario e linguagem das flores, das cores e das pedras preciosas, Lisboa: Aillaud, Alves, 1913, p.12, e o profundo entendimento entre amados: “quero o que tu queres”, ibidem, p. 84.

6. Um Portal exotérico. A iniciação de Psique.

Contornado o jardim simbólico, depois desta imersão na filosofia do mito, encontramos no lado Sul Poente um duplo portal, em ambos os pisos, inferior e superior. Esta dupla entrada reflecte a necessidade de separar a zona de recepção, situada no piso térreo, da zona mais privada, destinada ao proprietário, José Manuel, cujo acesso independente é garantido por uma escada exterior. A primeira apresenta dez baixos-relevos assinados e datados de 1952 e uma escultura de autoria de António Paiva. A segunda é um amplo e côncavo painel de azulejos de Almada Negreiros. No meu entender, a primeira corresponde à parte exotérica da casa, enquanto a segunda dá acesso à divisão esotérica, destinada aos poucos eleitos do entourage do proprietário.


20. António Paiva, Baixos-relevos e Escultura. Portal principal da Casa. Fotografia©Paulo Cintra, Novembro 2008.

A intenção de decorar plasticamente o portal principal da Casa é visível nos desenhos do projecto de António Varela.

Em particular, confrontando os primeiros desenhos dos alçados de 1951 com as alterações de 1955, enquanto reparamos na inalterada presença das sete esculturas do conjunto decorativo da ombreira, surpreende a substituição da primordial e vaga ideia da escultura cimeira à porta por uma mais abstracta modelação zoomórfica. O arquitecto imagina, no primeiro projecto, três figuras antropomórficas com uma provável maternidade por cima do portal e, quatro anos depois, troca-as pelo ouroboros, mantendo inalterada a ideia do óculo e da janela que albergaria o vitral.


21. António Varela, Obra 23293, Processo 35792/1951, Folha 53, Arquivo Municipal de Lisboa.


22. António Varela, Obra 23293, Processo 2306/1955, Folha 11, Arquivo Municipal de Lisboa.

O escultor Virgílio Domingues recorda-se de ter assistido e participado na execução dos dez baixos-relevos que fogem, sem dúvida, à iconografia habitual do escultor. O estilo francamente geométrico destas terracotas é algo único na produção até agora encontrada do artista, que muito provavelmente correspondeu a um requisito específico de encomenda. Contrariamente à práxis da época, em que, como lembra António Duarte num artigo in memoriam de Paiva, “os artistas plásticos eram solicitados a integrar na arquitectura e espaços urbanizados as suas criações, realizadas sem dirigismo, que estes não consentiriam qualquer tutela, digo castração”, [1] o esclarecido comitente, José Manuel, terá fornecido ao escultor o motivo e o sujeito desta encomenda. Será que na sua preciosa biblioteca, infelizmente dispersa, ou na sua produção inédita, malogradamente queimada depois da sua morte, segundo o seu desejo, encontrávamos a chave da interpretação deste ciclo iniciático? O conjunto de dez baixos-relevos em barro cozido apresenta um percurso possível através da gnose pitagórica, sintetizada pelas revoluções geométricas dos arquétipos do quadrado, do triângulo, do círculo, da espiral, do pentagrama, interligados pela ideia da progressiva eclosão da luz, do 1º ao 10º grau, correspondente à gradual iluminação do iniciado.


23. António Paiva, Dez baixos-relevos. Portal principal da Casa. Fotografia©Paulo Cintra, Novembro 2008.

O número dez é sagrado para os pitagóricos. Almada Negreiros cita “os dez lugares da colecção do número” no seu escrito Ver, ligando-os à figura do Pentalfa, ou Pentagrama, ou Estrela de cinco pontas.


24. José de Almada Negreiros, Os dez lugares da colecção do número, desenho publicado em Mito-Alegoria-Símbolo: monólogo autodidacta na oficina de pintura, Livraria Sá da Costa, Lisboa, 1948, republicado em Almada Negreiros, José de, Ver, notas e prefácio de Lima de Freitas, Lisboa, Arcádia, 1982, p. 260.

As linhas do pentagrama cruzam-se em 10 pontos, desde 0 até 9. A soma dos algarismos na horizontal, que é perpendicular ao segmento que une o zero e o cinco e dele equidistante, é sempre 10.

O número cinco, em linha com o zero, ocuparia o eixo de simetria da série, dividindo-a em duas metades. Não por acaso, António Paiva desenha o Pentalfa em 5ª posição. Almada lembra que, sendo o zero contíguo de um e nove, tanto pode começar como terminar a série, tornando a colecção dos algarismos circular e potencialmente ilimitada. Utilizando um verbo a ele muito caro, Almada diz “a colecção recomeça sempre até infinito” [itálico nosso]:[2]

A teoria do eterno retorno e do eterno devir é sintetizada por António Paiva na figura zoomórfica que domina o portal, alusiva ao ouroboros, reunindo os conceitos de princípio e fim, de vida e morte, de nascença e renascença.


 25. António Paiva, Escultura. Portal principal da Casa. Fotografia©Paulo Cintra, Novembro 2008.

O símbolo da eternidade está relacionado com a roda da evolução, com o movimento e a continuidade, com a união entre o um e o todo, com a criação e a existência circular dos seres, com a união entre céu e terra, sendo a serpente animal infernal e terrestre e o círculo símbolo do mundo celeste.

Os antigos interpretavam o Ouroboros (do copto Ouro = re e do ebraico Ob = serpente), ou seja a serpente que morde a própria cauda, como a mudança do ano e o retorno ao início, mas também como princípio alquímico do fogo.[3]


26. Símbolo alquímico da serpente Ouroboros in Antigo Manuscripto Grego, Bridgeman Art Library Ltd. v. Corel Corporation.

Não por acaso o proprietário, José Manuel, autor do texto A Alquimia do sonho, 1951 não só explora o tema do eterno fluir do tempo
Há qualquer cousa de profundamente doloroso na consciência. Tudo flui, tudo se perde irremediàvelmente… A única eternidade do homem é a plena vivência do instante, comunhão com tudo, indiscriminadamente, em contemplação e humildade, em aceitação e dádiva.[4]
mas também põe como nume tutelar da sua casa a serpente, o animal alquímico capaz de se devorar a si mesmo, tal como “o fogo que se alimenta com o fogo […] o fogo que consome tudo, que abre e fecha todas as coisas”.[5] Por isso a serpente é alter-ego da porta, tal como lembra o proprietário da Casa num seu escrito de 1964:
A cobra: desde o princípio do mundo amaldiçoada rasteja de porta em porta à procura de quê? de um perdão? de uma esmola? talvez de nada de resto quem a conhece? quem a vê?[6]
Aparentemente naïf, este Bestiário, esconde uma mensagem profunda, invisível ao profano, mas evidente para quem procure uma exegese crítica do texto. Ligado às origens e ao pecado, o pobre animal é associado à porta e à invisibilidade. Neste “quem a vê ?” é legível um apelo aos iniciados que conseguem ver além das formas, da natureza, do quotidiano, tal como lembra o poeta na epígrafe do mesmo texto:
"Rien ne me parait plus surprennent que le banal; le surréel est là, à la portée de la main, dans le bavardage de tous les jours." Eugène Ionesco[7]
Premissa necessária para o Neófito que queira ultrapassar a ombreira da porta do Conhecimento Superior é a clarividência, ou seja não só a capacidade de ver claramente, de ante-ver, mas também de possuir a segunda vista, na qual falava Swedenborg,[8] para descortinar os misteriosos significados que as aparências encobrem. Indicativa dum contexto iniciático, como o da casa, preanunciado pela entrada a xadrez, é esta associação entre a porta e o infinito. Se o Conhecimento Superior permite a transição entre dois mundos, desde as trevas até a luz, é significativo que até mesmo no elemento da porta, verdadeiro diafragma entre estas duas esferas, se apresentem os emblemas do infinito.

Mais ainda. Na minha opinião, na escultura adossada de António Paiva, por detrás do símbolo do ouroboros, estão os emblemas do Ómega[9] e do Alfa sobrepostos: o Ómega por baixo e o Alfa por cima. Trata-se das duas letras justapostas: o corpo da serpente descreve o Alfa em posição vertical, por detrás dum suporte em jeito de Ómega. Deste jogo entre o zoomórfico e o cifrado, resultaria um tríplice emblema, Alfa-Ouroboros-Ómega, a sublinhar, por um lado, o início e o fim de Tudo e de todos os Tempos (Alfa-Ómega) e, por outro, a continuação dos Tempos no eterno recomeço até Infinito (Ouroboros). Isso condiz com a interpretação unitária da Casa como união dos opostos, num contexto dedicado a Psique. Uma reverberação acústica desta interpretação ler-se-á nas poesias de José Manuel:
Serás o início e o fim
De todos os momentos
A primeira e a última
De todas as mulheres[10]
Depois o príncipe encontrou a sua alma e amou-a tanto tanto tanto que deu a sua vida por ela.
E nesse mesmo instante reconheceu-a e descobriu o seu mistério
A sua alma era também a sua morte.[11]
Psique coincide com o início e com o fim, remetendo simultaneamente para a circularidade infinita dos Tempos. De facto, segundo a doutrina órfico-pitagórica, Psique, ou seja a Alma, cumpre uma viagem (Metempsicose), transmigrando depois da morte para outro corpo.

Observando o desenho do alçado Noroeste de 1955 de António Varela, reparamos numa vontade de redução do símbolo zoomórfico à geometria triangular dum Delta.


27. António Varela, Obra 23293, Processo 2306/1955, Folha 11, Arquivo Municipal de Lisboa.

O Delta é na realidade uma tétrakis. Pitágoras e os seus estudantes prestavam juramento sobre esta figura, baseada no número quatro.

28. Tétrakis pitagórica

Como se vê, cada lado do triângulo equilátero tem quatro pontos. No vértice está o número 1. A tétrakis representa o número dez, soma dos primeiros quatro números naturais, 1+2+3+4, dispostos em pirâmide ou Delta. O número 10 exprime a multiplicação dos seres e das formas criadas e o retorno à Unidade, através da reintegração no Fogo primordial, no Espírito Criador.
Se na sequência numérico-geométrica das dez terracotas está didáctica e analiticamente explicitado o caminho do iniciado, no ouroboros, cimeiro do portal, encontramos a síntese geométrica e filosófica desta viagem. O portal parece-nos a metáfora implícita do percurso por parte do Neófito que, em frente às portas do saber, é chamado a meditar no contínuo começo ou re-começo, onde a cabeça e a cauda, o alfa e ómega, o 1 e o 10 se sobrepõem, contemplando os vários graus de iluminação, exemplificados nos baixos-relevos.

[1] António Duarte, Escultor António Paiva, in Belas-Artes Revista e Boletim da Academia Nacional de Belas-Artes, Lisboa 1986 a 1988, 3ª série, nº 8 a 10 (especial comemorações), p. 165.
[2] José de Almada Negreiros, Mito-Alegoria-Símbolo: monólogo autodidacta na oficina de pintura, Livraria Sá da Costa, Lisboa, 1948, republicado em José de Almada Negreiros, Ver, notas e prefácio de Lima de Freitas, op. cit., p. 260 [itálico nosso].
[3] Roob Alexander, Il Museo Ermetico, Alchimia & Mistica, Tachen, Köln, 1997, pp. 402-403 e 421.
[4] José Manuel, Alquimia do sonho, op. cit., p. 33.
[5] Abraham Eleazar, “Uractes chymisches werk”, Leipzig, 1760, in “Alquimia & Misticismo”, Alexander Roob, Taschen, Lisboa, 1997, p. 403.
[6] José Manuel, Bestiário, Lisboa, Tipografia Ideal, 1964, n. 7.
[7] Idem.
[8] Emanuel Swedenborg, cientista, filósofo, teólogo, inventor, político, literato, espiritualista sueco do século XVII-XVIII, descreveu a Ciência das Correspondências na obra Arcana Cœlestia, entre 1746 e 1747.
[9] Devo ao arquitecto Hugo Nazareth Fernandes e a uma troca de opiniões num café à tarde a intuição de que a escultura simulasse um Ómega.
[10] José Manuel, Eros, in Eros, revista literária fundada e dirigida por José Manuel, nº. 1 (Abril 1951) - nº 15 (Dezembro 1958), I, 17.
[11] José Manuel, Uma história triste, in Eros VIII (Fevereiro 1955), op. cit.