domingo, 20 de dezembro de 2009

14.4 José Manuel Mota Gomes Fróis Ferrão.

Poeta, filósofo, pintor, editor, pianista, compositor, homem de cultura e mecenas, José Manuel Mota Gomes Fróis Ferrão aparenta ser o centro à volta do qual foi ideada, construída e decorada a Casa da Rua de Alcolena. A posição privilegiada com entrada independente e elitista dos seus aposentos, a incontestável afinidade dos textos poéticos seus ou editados por ele, a dedicatória gravada na pedra do jardim, coincidindo a data de acabamento dos trabalhos de Varela com o seu aniversário: tudo aponta para uma personalidade extremamente carismática que terá, embora jovem, chamado a si as rédeas dum discurso extremamente unitário, integro e completo face à pluralidade, multiplicidade e diversidade das várias vozes artísticas da Casa.

Como um sábio director de orquestra, José Manuel conseguiu harmonizar as vozes díspares da sua Casa polifónica.

Mas quem era José Manuel Mota Gomes Fróis Ferrão ou mais simplesmente José Manuel, como gostava de assinar os seus trabalhos?

A escassez de notícias biográficas a seu respeito obriga a limitarmo-nos a citar unicamente o local e a data de nascimento, Lisboa, 10 de Fevereiro de 1928 e a sua licenciatura em Ciências Históricas, Filosóficas e Pedagógicas, iniciada em Lisboa e concluída em Coimbra. Homem dotado de uma inteligência e cultura incomuns, dedicou-se sempre e unicamente à arte, rodeando-se de interlocutores como Eugénio de Andrade, Jorge Nemésio, Fernando Guimarães, Augusto Sobral, António José Maldonado, José Bento e Francisco Arcos. A filha Madalena lembra que o seu pai privilegiava a companhia de José de Almada Negreiros, artista que estimava muito e com o qual entretinha demoradas e intensas conversas acerca da arte e da filosofia. Morreu repentinamente em Lisboa em 1993 devido a ataque cardíaco não confirmado pela certidão de óbito.

Reconhecemos que, sobretudo com base nos textos por ele publicados, a figura de José Manuel é imprescindível para a interpretação daquele que definimos ser o fil-rouge que une a obra: o Tema com variações das Metamorfoses de Psique. É o próprio proprietário da Casa a dar-nos a chave para esta pista interpretativa através das suas declarações poéticas e comentários estéticos na revista Eros por ele fundada.

Declara o poeta: ­
Tudo pode ser motivo de poesia: uma estrela, um corpo de mulher, um lago, uma cidade em ruínas, -o que quer que seja. De resto, o objecto só importa depois de transfigurado. De certo modo irrealiza-se, ou melhor, transrealiza-se, porque não perde realidade, toma outra realidade.[1]
O que conta não é o objecto, mas a sua transfiguração. Como dizer que o texto, no nosso caso, é um pré-texto. A Casa não é fim, mas meio de um discurso que quer pôr o acento no processamento das imagens, desprezando o seu resultado.

Prosseguindo no seu raciocínio, o proprietário quase nos fornece um roteiro da casa:
De início (o objecto) está exposto, simplesmente, - despido de toda e qualquer significação. O sentido que ele possa vir a ter depende de quem o observa, ou recorda, ou imagina. Só de­pois de absorvido pela consciência se torna significativo.[2]
Este é o percurso do visitante que, acedendo pelo portal esotérico (início), entra na Biblioteca e contempla o vitral de Eros e Psique (objecto despido). Logo o sujeito é chamado a três operações: observar (visão), recordar (memória) e imaginar (visão interior). Uma vez feitos estes três passos para a sua iniciação e uma vez que o objecto tenha sido “absorvido pela consciência” o visitante pode prosseguir nas metamorfoses mais explícitas de Psique e contemplar a sua perfeita união com Eros.

Gostaria de frisar a operação da memória. É através desta passagem que a Alma, segundo Platão, pode cumprir a sua instrução. Na filosofia platónica a Alma (Psique) não morre, mas muda de identidade, (do grego meta: mudança + en: em + psiquê: alma), renascendo, após ter esquecido a sua vida anterior, através da passagem pelas águas do rio Lete, o rio do olvido. Para Platão, conhecer não quer dizer aprender ex-novo, mas sim relembrar o que foi limpo pelas águas do Lete, voltar atrás da própria reincarnação. O processo iniciático da gnose passa portanto através do olhar físico, da memória, da visão interior. Psique sofre assim uma Metempsicose, ou seja muda, transformando-se em outras identidades, mas no fim torna-se, através da memória, uma Psique regenerada.

O objecto visto, recordado, imaginado torna-se, no universo de José Manuel, matéria poética. Assim ele confessa a própria atitude ekphrástica:
O poeta vai mais longe. Não se limita a dar-lhe um sentido de circunstância, procura recriá-lo, fornecendo-lhe, dentro de outras coordenadas, uma nova presença, uma nova dimensão, um novo dinamismo. O objecto é assim re-exposto, não como realidade onto­lógica, mas como realidade poética. Por uma verdadeira al­quimia da sensibilidade e do pensamento, ele ressurge, numa outra perspectiva, como um símbolo mais ou menos activo, mais ou menos intencional. [3]
Deste modo, na escrita do poeta, todo o pré-texto que é a sua Casa torna-se texto. Como isso foi possível?
Tudo é possível
dentro da alma[4]
Responde-nos José Manuel.

A sua aspiração era fundir a vida com a arte, procurar a vida na arte e a arte na vida. A Casa, espelho do quotidiano, vivenda e vivência do seu ideal poético, representava a máxima concretização destas aspirações,
O poeta e a poesia coexistem em plenitude, formam uma simbiose de tal modo absoluta que se torna impossível separá-los. E para quê, separá-los? Uma vez conseguido o sortilégio, tudo se passa já no domínio do sobrenatural. É nele que têm origem as suces­sivas metamorfoses que vêem a eclodir no poema. «Le poème fait son poème secret» […] Porque já é um poema - e talvez o mais puro, o mais genuíno de todos - essa comunhão do poeta e da poesia, esse matrimónio da vida e do sonho, essas bodas de sangue e de luz.[5]
Recolhido na sua “mansão inteligível”, como diria Sócrates de quem Platão é porta-voz,[6] José Manuel procura a Unidade, confessando no seu romance poemático:
Sou incapaz de resolução - polarizo-me. E cada nova situação é um novo problema inexplicável, insolúvel. Não encontro nunca a solução. Vivo em dissonância. Mas, no fundo, muito no fundo, - espero sempre. Todos os dias procuro a estrela da manhã, - qualquer cousa como um caminho.[7]
A Estrela da Manhã, também dita Phosphoros, ou Lúcifer, não é outra coisa que a iconografia do Pentalfa invertido do portal iniciático. Como dizer “todos os dias inicio, todos os dia retomo o caminho, re-começo”. Procurada no céu ou nas reproduções em azulejo e pintura das paredes exteriores ou interiores da casa, esta estrela é uma chave simbólica de Auto-Conhecimento. Assim arte e biografia coincidem:
Há em mim uma dupla existência. Sou simultâneamente tese e antítese (sensível, intelectual e emocional). Mas não realizo nunca uma síntese. Porque não há continuidade lógica na vida.[8]
A explicitada coincidencia opositorum que percorre toda a leitura da Casa encontra nessa confissão do seu proprietário a prova da íntima correspondência entre arte e vida que ele desde sempre procurava.
Na sua rubrica de antologia contemporânea, nos números 14-15 de Eros, José Manuel anuncia o fim da revista:
E vem a propósito neste último número de Eros - último pela evidência do fracasso a que, aliás, estava condenado desde o início - citar alguém que transformou uma vez mais o mito poético em realidade.[9]
Mais um reconhecimento, este, de como a temática de Eros e Psique envolveu não só a sua vida literária, mas a sua existência privada. O mito do Amor e da Alma exposto na sua mansão preenche as páginas da sua actividade poética e da sua aventura editorial.
No final desta viagem perguntamo-nos, e o poeta?
E o poeta? No recolhimento aparentemente hermético, impene­trável dos símbolos - por timidez? por pudor? - vai procurando, dis­cretamente, traduzir-se em enigmas - em oráculos - que são como portas abertas para o mistério de toda uma vida.[10]
A espectacularidade por um lado e a intimidade por outro da residência, única no seu género, é baseada na ideia unitária. Nesse sentido, a Casa é teatral e simultaneamente críptica, expõe-se e ao mesmo tempo vela-se. Como diz Almada,
No teatro todos são um; toda a arte que passa do particular para o geral faz imediatamente teatro;
Desde o princípio do mundo até hoje não houve mais de duas pessoas: uma chama-se a humanidade e a outra o indivíduo uma é toda a gente e a outra é uma pessoa só.[11]
E Psique?

No fim das suas peregrinações, tribulações e metamorfoses, Psique, renovada, ganha a unidade e conquista a eternidade. Desejamos, por isso, que a Casa da Rua de Alcolena, recuperada, se mantenha unida e eternamente intacta.

182. José Manuel na sua Biblioteca com o seu Fox Terrier, Jagodes. Ao fundo, o vitral de Eros e Psique. Fotografia gentilmente cedida por Madalena Ferrão. Espólio familiar. Fotografia©Paulo Cintra, Novembro 2008.

[1] José Manuel, Antologia Contemporânea, Jean Cocteau, in Eros XII-XIII (Outubro 1957), op. cit.
[2] Ibidem.
[3] Ibidem.
[4] José Manuel, Transfigurações, dedicado a Eduardo Viana, in Eros V-VI (Outubro 1953), op. cit., V-VI, 6.
[5] José Manuel, Antologia Contemporânea, Henri de Lescoët, in Eros XIV-XV (Dezembro 1958), op. cit.
[6] Cfr infra, p. 18. Platão, A República, trad. e notas de Maria Helena da Rocha Pereira, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1993, livro VII, pp. 317 e segg.
[7] José Manuel, Alquimia do sonho, op. cit., p. 54.
[8] Idem, p. 54.
[9] José Manuel, Antologia Contemporânea, in Eros XIV-XV (Dezembro 1958), op. cit.
[10] Ibidem.
[11] José de Almada Negreiros, Pierrot e Arlequim, Personagens de teatro, in Manifestos e Conferências, Assírio & Alvim, Lisboa, 2006, pp. 101-103.

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