domingo, 20 de dezembro de 2009

9.4 Duvido ergo sum

Através das produções literárias de ambos os artistas, apercebemo-nos de que o pecado de Psique não está na sua curiosidade, mas sim na sua dúvida, na sua insegurança, na falta de autoconfiança e, sobretudo, na falta de fé no próprio Amor.
Tudo aparentemente ridículo, imoral, - em verdade, uma simples curiosidade de criança. Eva perante o fruto proibido.[1]
O pecado de Psique, segundo a interpretação do mito por Almada, é o escrúpulo. Não é nem a sua desobediência, nem a sua curiosidade, que, pelo contrário, constituem as suas qualidades. Como Almada, assim fala José Manuel:
Não procures entender
o que a vida te mostrar.
Sabedoria é viver
sem pensar.
Conhecer é duvidar.[2]
Na alquimia dos opostos até mesmo os conceitos de Sabedoria e Dúvida estão reunidos, algo que não espanta num contexto mítico-filosófico como o da Casa, cuja inspiração platónica é evidente. Numa espécie de socrático-cartesiano duvido ergo sum, textos literários e figurativos entrelaçam-se na moradia do Restelo.
Podes descrer de tudo,
de tudo podes duvidar.
Só não podes descrer
nem duvidar daquilo que és.[3]
Quando possuíres em ti a tua vida
e, finalmente livre
de toda a vã reminiscência humana,
olhares o que foste
ao mundo de impressões sensacionais,
vagas, contraditórias,
sem unidade e sem nenhum sentido
que foi a tua vida,
verás talvez que, dentro de ti próprio,
tão próxima de ti,
alguma, cousa permanece estável,
profundamente pura,
Alguma cousa que tu próprio ignoras,
mas entendes e sentes,
não com a inteligência ou as sentidos,
mas com o corpo todo.
Serás então autêntico e presente
Dentro do tempo instável,
bastar-te-ás a ti própria, saberás
amar a tua vida
e possuirás, em ti completamente,
lúcido como um deus;
a consciência de que és e o justo orgulho
de tudo quanto vales.[4]

Na sua iniciação ao Amor e à Gnose, Psique é instruída por Eros sobre os mistérios socráticos do auto-conhecimento. Se ver é saber, saber é ter visto e, por consequência, ter visto é lembrar, de acordo com a teoria da metempsicose platónica:

ELE - Não te ensino nada. Longe de mim que aprendas comigo. Tu sabes isto de nascença. Eu só to dou a ver: que sejas tu a vê-lo!

ELE - Sim: a vida não é outra coisa que conhecer-se a si mesmo.

ELE - O mundo tem de facto a sua sabedoria e esta é fácil de saber, mas é anónima apesar de ter imolado tanta gente. O difícil é o nosso, o de cada um: conhecer-se a si mesmo. E uma pessoa não tem mais tempo do que este: conhecer-se a si mesmo. Como pode alguém parar de conhecer-se se as suas idades o mudam constantemente?[5]
Na versão teatral do mito, Almada interpreta a dúvida de Psique como causa da sua segunda morte. Depois de ter duvidado,
ELA - Mas se eu o não conseguisse?[6]
suscitando a ira e o desaparecimento de Eros, Psique morre de novo. Mais uma vez, antes de desaparecer, Eros lança um anátema à amada, culpando-a da sua cegueira:

ELE - Tu não vês o que dizes
não vês o que sentes
não vês o que pensas, pareces um profissional. […]
Tu não vês por ver
sentes por sentir
pensas por pensar
estás por quem?
tu por ti?
O quê por amor?[7]
O súbito desaparecimento de Eros provoca uma solidão e uma dor inefáveis na Alma que, apesar de continuar viva, conhece a morte:
ELA - Custa-me tanto a estar sozinha. É como se tivessem parado todos os relógios do mundo, e o sol, e afinal fui eu só que parei desde que ele desapareceu. Ninguém me preveniu de que também havia esta morte de não passar o tempo em vida.
Consequência deste abandono é a extenuante procura de Eros, por parte de Psique. Por outras palavras, é a dúvida que desencadeia a busca do Amor pela Alma. Sem o Amor, ela está condenada ao limbo:
sem estar no humano
sem estar no divino
sem lugar na vida
sem lugar na morte[8]
Paradoxalmente a dúvida é o elo necessário para passar da solidão à união. Na verdade, o pecado de Psique causa, uma dupla perda: a de Eros por Psique e a de Psique por Eros. Na Alquimia do sonho, José Manuel inverte os papéis dos amantes, tal como no vitral, e descreve um Eros perdidamente em busca da amada:
Em vão procurei reaver-te. Perdera-te, como perdera a pureza inicial do sentimento…O pensamento é estéril. A ideia destrói o real. Sofri a consciência do meu próprio crime, o pecado, o remorso, o castigo do conhecimento: - a dúvida, o intelectualismo perdeu-me, perdeu-te, perdeu-nos. Nervosamente procurei ainda abraçar o infinito. Traí o momento e perdi o direito à eternidade.[9]
Desta perda originar-se-ão aquelas a que eu chamo as metamorfoses da Alma à procura do Amor, visíveis no conjunto de azulejos que reveste a casa. A razão destas metamorfoses é evidenciada em outros passos da obra do proprietário da casa.
Curiosa, a alquimia do sonho. As imagens sofrem todas as transformações. A matéria não importa. O que importa é a intenção, a vontade. Na consciência não há leis fixas. Tudo flui, como um grande rio inesgotável. Para onde? Para o fim do mundo, para o infinito. Porquê? Tudo é pretexto. Como? De qualquer modo.[10]
A transformação das imagens no eterno fluir das coisas, no alquímico devir da vida, coincide com o significado unitário das diferentes formas que Psique encarna ao longo deste percurso. Na raiz das suas atribulações está o seu pecado. Ela aparece-nos em toda a sua ambiguidade, semelhante, mas ao mesmo tempo diversa de Eva. Os seus olhos abrem-se, como os da progenitora, e com eles abre-se a via do conhecimento que torna Psique, assim como Eva, igual aos deuses.
Scit enim Deus quod in quocumque die comederitis ex eo aperientur oculi vestri et eritis sicut dii scientes bonum et malum.[11]
Tanto na bíblia, como nas fontes clássicas, o acto da visão coincide com o da sabedoria.
Almada, que é um modernista com alma de renascentista, herda esta crença e afirma a prioridade do acto da visão na polifonia da sua escrita e da sua arte.
Foi a própria natureza que pôs a vista ao alto dos cinco sentidos, e a seguir o ouvido, a meia distância da vista e do olfacto. Esta primazia da vista é a natural do homem.[12]
Ao mesmo tempo, traça uma grande diferença entre ver e olhar:

Ver é pensar. Olhar não é pensar.
Ver é a conjugação perfeita dos cinco sentidos. O primeiro sentido é olhar. Cada um dos sentidos é primeiro de cada vez nesta conjugação dos cinco. Assim mesmo a conjugação é sempre Ver.[13]
e confere ao desenho o papel de trâmite entre visão e sabedoria.[14]
A centralidade do tema da visão na pesquisa teórico-artística de Almada é inegável, basta consultar os seus apontamentos reunidos por Lima de Freitas com o título Ver. Mas aqui, na Rua de Alcolena, é singular a coincidência com as ideias filosóficas expressas por Eudoro de Sousa no seu texto dedicado ao artista:
É que saber dizem os gregos, infinitivo presente ειδέναι que é o perfeito de ver. Como dizer: saber é ter visto.[15]
O desejo do conhecimento passa, portanto, pelo desejo da visão. Estes olhos tão ávidos de imagens, como eram os olhos de Almada desde a sua infância,[16] encontram no mito de Eros e Psique uma alegoria e um símbolo da visão clara e elucidada do homem renascido e regenerado na escola de Amor.

O binómio Eva-Psique tem um interessante paralelo cromático na parede da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.


54. José de Almada Negreiros, Expulsão de Adão e Eva do paraíso, Fachada da Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa. Fotografia de Barbara Aniello.
http://ic2.pbase.com/o4/21/4921/1/99280202.IfcMWBYS.Lisboa_Cidade_Universitaria1426.jpg

Aqui, Eva é dourada, enquanto Adão é cor-de-rosa. Tal como a figura despertadora do vitral que assume a cor dourada da iluminação, Eva, sendo fautora da sua própria acção gnoseológica, desencadeia o Conhecimento superior, colhendo o fruto do saber, do Conhecimento do Bem e do Mal. Por isso Eva é dourada, enquanto Adão é cor-de-rosa. O homem, que tem na figura deitada e dormente do vitral o seu alter-ego, é passivo, sofre e padece a acção. Por isso Almada adopta a cor mais apagada entre as cores que compõem a chama do conhecimento.

[1] José Manuel, Alquimia do sonho, op. cit., p. 31.
[2] José Manuel, Primeiro livro de odes, Tipografia Ideal, Lisboa, 1950, p. 23.
[3] José Manuel, Alquimia do sonho, op. cit., p. 30.
[4] Ibidem, p. 35.
[5] José de Almada Negreiros, O mito de Psique, op. cit., p. 180.
[6] Idem.
[7] Ibidem, p. 181.
[8] Idem.
[9] José Manuel, Alquimia do sonho, op. cit., p. 40.
[10] Ibidem, p. 43.
[11] “Mas Deus bem sabe que, no dia em que dele [do fruto] comerdes, vossos olhos se abrirão, e sereis como deuses, conhecedores do bem e do mal.” Bíblia, Génesis, 3:5.
[12] José de Almada Negreiros, Ver, op. cit., p. 76.
[13] Ibidem, p. 197.
[14] Cfr. infra, par. 9.2, nota nº 6.
[15] Eudoro de Sousa, op. cit., p. 14.
[16] O episódio é contado in Conversas com Sarah Affonso, de Maria José de Almada Negreiros, Arcádia, Lisboa, 1982, p. 38: “Um dia, era o Zé pequeno, ia a correr por um desses corredores e quando deu a curva, esbarra com o director que o agarrou assim pelos ombros «diz-me uma coisa. Eu tenho 360 alunos, e todos têm os olhos na cara, porque é que tu tens a cara nos olhos?!». Almada foi desde então apelidado “o menino d’olhos de gigante”. Mesmo Almada brincava com a sua alcunha, como atesta a epígrafe do seu poema O menino d’olhos de gigante: “Dizem que sou eu o menino d’olhos de Gigante, e eu juro pela minha boa sorte que não sou só eu”, Outubro, 1921, publicado em Contemporânea, Grande Revista Mensal, dir. José Pacheco, edit. Agostinho Fernandes, ano 1, nº 3, p. 150.

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