domingo, 20 de dezembro de 2009

10. A Parede Sudoeste: a maternidade de Psique.

Tal como referimos, a Casa, projectada por António Varela, está orientada de acordo com a Direcção Única da qual Almada fala na revista por ele fundada SW: Sudoeste.


72. Posição da Casa com respeito à imagem de Portugal no mapa da Europa de José Almada Negreiros.

Em particular, Almada concentra toda a decoração azulejar nesta única parede, virada a Sudoeste, com um claro intuito expositório. Aqui, deparamo-nos com duas varandas contíguas, contendo respectivamente uma Maternidade e uma Paternidade em estilo monocromático, preto sobre verde, e uma cena policromática, animada por um Cabaret, um Par dançante, Acrobatas e Bailarinas. Por baixo, no piso inferior, o espaço é ocupado por um Arlequim e uma Columbina monocromáticos, enquanto na varanda adjacente nos deparamos com o mais belo Nocturno jamais pintado em azulejo: um Casal deitado em frente duma janela aberta, o vento a abanar uma cortina, uma figura feminina debruçada na varanda, iluminada pelo luar, um barco a deslizar na noite, transportando um Casal unido num abraço.

Neste sentido mantêm-se substancialmente inalterados os desenhos dos alçados de 1951 e de 1955, onde a vontade de decorar em azulejo a varanda da biblioteca é patenteada em jeito de esboço, embora mais definido face aos outros azulejos do 1º andar e do Rés-do-chão, cuja varanda aberta sofre uma mutação em marquise:

73. António Varela, Obra 23293, Processo 35792/1951, Folha 53, Arquivo Municipal de Lisboa.


74. António Varela, Obra 23293, Processo 2306/1955, Folha 11, Arquivo Municipal de Lisboa.

A idealização da infância é um tema recorrente e muito querido para o poeta e para o pintor. Segundo José Manuel:
A infância é o que há de mais sério, e de mais profundo, e de mais humano no
homem. O homem que encontra a infância aproxima-se tanto da natureza que se
funde com ela...[1]
José Manuel recorre à imagem da infância, do menino que pergunta os porquês, questiona o sentido das palavras, tem sede de histórias, como por exemplo em O Sonho, poema quase em verso para todas as crianças do mundo.[2]

A obsessão pelo tema do nascimento e da renascença é recorrente em toda a escrita de Almada,
Põe-te a nascer outra vez! [3]
Grita o escritor na Cena do Ódio. Almada, no seu universo filosófico, liga este conceito ao da vocação, da pró-vocação e com-vocação, por outras palavras, ao da iniciação. O seu apelo é silencioso, dirigido aos outros sentidos: vocar quer dizer chamar, convidar, incitar a nascer uma segunda vez, re-começar. Lembra-nos Almada:
A segunda vez que se nasce assiste-se ao próprio nascimento[4]
As suas obras começam no silêncio e, depois de um segundo nascimento de natureza claramente espiritual, voltam ao silêncio.

Nasce segunda vez o que morre a morte primeira.
Nasce-se segunda vez o ser
vivo eterno que somos.
Iremos por onde não há adesão possível à segunda vida
Depois é o silêncio que fala
A paz que nos esperava.[5]
Uma impressão de eterno começo, de contínuo início acompanha toda a vida artística do poeta-pintor.

Estou sempre às portas da vida,
Sempre lá, sempre às portas de mim[6]
Na poesia, tal como também na obra teatral, Almada reflecte sobre o cíclico, eterno suceder-se do tempo.
O BONECO - Cala-te, coração! Deixa ouvir o mar...
A BONECA - Tu também viste o mar?
O BONECO - O mar foi feito por nossa causa!...
A BONECA - Ah!... É assim, juro-te, exactamente assim o mar... Oh! Como tu o viste
bem! Dá-me a tua mão para ser tão grande o silêncio... (Pausa)
O mar!... não acaba nunca o mar!...
O BONECO - O mar começa sempre...[7]
Vamos do silêncio dito por palavras ao silêncio cénico (pausa), ao infinito re-começo do mar (O mar… nunca acaba o mar), repetição, não por acaso, em forma de Rondo da palavra “mar” neste verso. Não por acaso também, esta peça intitula-se Antes de Começar. Reparamos como este termo-chave volta no curso de toda a produção do artista.

Como na metáfora marinha não é possível distinguir o fim do início, o espectador fica desorientado quando, no final da cena, enquanto o tambor anuncia o iminente começo da representação, desce o pano e surge um grande silêncio.

Antes de começar é um espectáculo que é um ante-espectáculo, porque conta um fora de cena, e é também um anti-espectáculo, afirmando que a verdadeira peça é afinal uma não-peça.

Paradoxalmente o próprio Almada acaba a sua existência depois de ter assinado o seu Começar.

Além do tema do início ou da iniciação espiritual, a iconografia da Estrela circula entre as linhas de um conjunto de poesias designado As quatro Manhãs.
Já sei que primeiro vê-se a estrela do futuro,
antes do futuro vê-se a estrela,
dizem que a estrela está quase pronta
para ser vista pela primeira vez uma madrugada
e assim todos os dias
sempre
até que eu acabe.[8]

A luz da estrela procurada pelo autor é um sinal de renovação, surge sobre a própria madrugada espiritual, alcançando o seu “eu” misterioso.

Oh estrela do meu sonhar!
Sem a tua luz própria
sem o teu distante cintilar
tão fixo lá do teu lugar
eu não podia achar aqui
o sítio do meu mistério.
[…]
Nada do que eu faço é ainda provisório
como na minha meia vida de ontem,
a metade de espera da nova metade que vale por duas!
E assim tinha de ser:
eu jamais saberia nada
senão através das minhas próprias dimensões,
senão à luz da minha estrela,
à luz da aurora do meu mistério Que o pobre do mundo clama
para que desvendemos cada qual os nossos próprios mistérios![9]
Verdadeiro prelúdio ao painel, e também ao Portal esotérico, estes versos falam de um misterioso par de duas metades e da luz como ponto de partida, trajectória e fim dum percurso que chega até ao limiar de um mistério.

Na última das quatro manhãs fala-se no conceito de Começar: nesta poesia o “eu” coincide com o “ser humano”, ponto de partida e chegada de toda a peregrinação poética, e não só, de Almada.

Tudo começava lá, ao principio,
num ponto:
um simples ponto sem dimensão,
e do qual partiam depois todas as linhas
todos os ângulos, cones e sectores
de uma esfera infinita
da qual a terra era uma pequena reprodução
e eu uma pequena reprodução da terra.
Desde o ponto inicial até mim
a linha era única
e não pertence hoje
senão a mim.
[…]
eu tive muitas vezes de dar voltas ignóbeis!
Mas até que cheguei aqui a isto que eu buscava,
e que é o principiar em mim.
Desde o ponto inicial
Já tudo começou para mim
e passados séculos e séculos
eu hoje vou exactamente em mim.[10]
Assombrada, entre palavras, transparece a matriz geometrizante do Universo estético de Almada, semeado de imagens como “ponto”, “linha”, “ângulo”, “esfera”, “dimensão”. Linguagem alusiva, a de Almada, que revela através dos sons e das vozes dos versos uma sensibilidade pela luz e pelo eterno retorno das coisas.

Num só dia, na mesa de pedra circular da varanda da casa-ateliê em Bicesse, Almada pinta cerca de três dezenas de desenhos-variações sobre o tema da maternidade.


75. José de Almada Negreiros, Maternidade, desenhos publicados em Vieira Joaquim, Fotobiografias do Século XX-Almada Negreiros, Bertrand, Lisboa, 2006, p. 140. Fotocompográfica, Lda.
https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjsBXdbWiiukC2ndDuBTeTNL-Qg76vAljkjij9UGw_NkCLZ4F79QpZ3HwlJi-o9yQ8F9NixWeSAGsXHwcCfggsyMm6nJ5e5QL9nKhZHX4GFhDsWNrc3N74c8EXZBkn5zLjoA3KYs5H2RpXU/s400/AlmadaNegreiros-Maternidade3-Estoril-Bicesse.jpg

O painel de azulejo que se encontra na Casa da Rua de Alcolena parece constituir a enésima variante, o completamento desta série. A mulher, ambiguamente de pé e, ao mesmo tempo sentada, por causa da argola do vestido, em jeito de laço, que confunde a anatomia e a postura da mãe, retratada no gesto habitual de levantar o corpo do filho até ao céu, expondo-o, como se fosse um passarinho prestes a voar.


76. José de Almada Negreiros, Maternidade, varanda do segundo piso da Casa de Rua de Alcolena. Fotografia©Paulo Cintra, Novembro 2008.

Do outro lado, o pai sustém o filho pelos braços e, olhando para uma pomba, levanta o queixo, descrevendo um arco com o pescoço. O filho repete o gesto do pai, simulando com as palmas abertas e agitadas o voo do pássaro.

77. José de Almada Negreiros, Paternidade, varanda do segundo piso da Casa de Rua de Alcolena. Fotografia©Paulo Cintra, Novembro 2008.
http://www.cidadaosporlisboa.org/imgs/imagens/1235081128W7uXO5am1Ri35HP1.JPG (_CCC4637.tif)

Para além dos paralelos poéticos desta imagem em Eros,
Como um puro sonho
despertas no mundo
pobremente humana
tristemente humana
despertas no mundo
como um puro sonho

Que estranho desejo
te queima por dentro?
Que vozes te chamam?
Que fogo te anima?
Arde-te no sangue
toda a minha vida


Não sabes o que há
além do teu berço
além dos teus braços
Que importa o que possa
haver - se o teu reino
não é deste mundo?

Teus braços agitam-se
um pouco. Procuram
a lua? Ou será
a lua que os prende
entre a sua teia
de sombra e de luz?


De noite despertas
sòzinha no berço
Apenas a lua
te faz companhia
Ou será um anjo
vestido de luz?


De súbito estendes
as mãos para a vida
Procuras colher
a lua entre os dedos
Nem sequer encontras
a sombra de um sonho[11]
a disposição fortemente simbólica das três figuras alinhadas no mesmo eixo vertical, lembra o vitral do Pai, Filho e Espírito Santo na Igreja de Nossa Senhora de Fátima em Lisboa.


78. José de Almada Negreiros, Trindade, Igreja da Nossa Senhora de Fátima, fotografia publicada em Vieira Joaquim, Fotobiografias do Século XX-Almada Negreiros, Bertrand, Lisboa, 2006, Fotocompográfica Lda. http://farm1.static.flickr.com/23/30850423_b95ca2c700.jpg

A ideia da maternidade-paternidade está significativamente relacionada com a dialéctica Eros-Psique, num contexto que leva o visitante da zona da residência reservada ao filho, à zona de sua mãe. É interessante reparar como, na disposição dos painéis, está patente uma divisão entre dualidade (mãe e filho) de um lado e trindade (pai, filho, pomba) do outro. Na minha intuição, esta divisão feminino-masculino, na varanda em alto à esquerda, é destinada a brotar na apoteose do andrógino na varanda em baixo à direita. Como no mito, a maternidade divina de Psique é preanunciada desde que ela respeite o veto de não contemplar o amado. A divindade garante-se fora do conhecimento sensível, directo, que passa pelos olhos dos mortais. Quem acredita, sem ver, no Amor ganha a eternidade.

[1] José Manuel, A Alquimia do sonho, op. cit., p. 53.
[2] José Manuel, O Sonho, in Eros III-IV (Dezembro 1952), op. cit.
[3] José de Almada Negreiros, Cena do Ódio, in Obras Completas, Poesia, vol. I, op. cit., p. 64.
[4] José de Almada Negreiros, Nome de Guerra, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001, p. 37.
[5] José de Almada Negreiros, Itinerário sobre o Joelho, in Obras Completas, op. cit., p. 207.
[6] José de Almada Negreiros, A sombra sou eu, ibidem, p. 208.
[7] José de Almada Negreiros, Antes de Começar, in Teatro, op. cit., p. 203.
[8] José de Almada Negreiros, Segunda Manhã, ibidem, p. 187.
[9] José de Almada Negreiros, Terceira Manhã, ibidem, p. 189.
[10] José de Almada Negreiros, Quarta Manhã, ibidem, pp. 190-191.
[11] José Manuel, Natividade, in Eros XIV-XV (Dezembro 1958), op. cit.

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