domingo, 20 de dezembro de 2009

14.1 António Jorge Rodrigues Varela

 
129. Fotografia de António Varela, espólio familiar, reprodução de Barbara Aniello.

O arquitecto, pintor e professor António Jorge Rodrigues Varela, responsável pelos primeiro e segundo projectos da casa, respectivamente datados de 1951-1955, é uma das três figuras cruciais que participaram na edificação desta Obra de Arte Total que é a Casa da Rua de Alcolena.

Nasceu em Leiria a 17-11-1902, onde frequentou o Liceu Rodrigues Lobo, associando-se mais tarde aos professores Narciso Costa e Ernesto Korrodi que terão influenciado muito a sua formação estética. Na Escola das Belas Artes no Porto estudou desenho com António Carneiro, Acácio Lino e José de Brito, e arquitectura com Marques da Silva. No Porto frequentou os artistas do grupo de Leiria, Luis Fernandes, Lino António e Octávio Sérgio. Em 1924, concluído o curso de arquitectura, começou a sua carreira de professor, primeiro nas Escolas Industriais do Marquês de Pombal e depois no Ensino Técnico (1932). Dirigiu projectos para a Exposição dos Centenários em Leiria em 1940. Assinou vários trabalhos, públicos e privados, como a reconstrução do teatro Pinheiro Chagas nas Caldas da Rainha, a Fábrica de Conservas em Matosinhos, algumas moradias no Estoril, Encosta da Ajuda, Lisboa. Projectou a Casa da Moeda em parceria com Jorge Segurado (1932-1938) e o Mercado em Coimbra (1937). Apresentou quadros a óleo na 1ª Exposição no Salão dos Independentes em Lisboa.[1] Faleceu precocemente a 3 de Julho de 1962, na solidão do hospital, sem avisar a família do estado terminal do tumor que o tinha atingido.[2]

Com respeito à conjugação das artes na Casa da Rua de Alcolena, o papel e o peso do arquitecto estão ainda por definir. A sua presença mais discreta e silenciosa, face à do proprietário e do pintor, levanta inúmeras hipóteses acerca das suas tarefas e da sua influência nas decisões que brotaram na edificação desta obra de Arte Total que é a Casa da Rua de Alcolena.

Com respeito à sua produção civil, o arquitecto aparenta manter na Moradia do Restelo a mesma cifra estética de outros edifícios, como por exemplo a residência construída para José Duarte Moreira Rato e Francisco Vilhena.[3] Nesta última reparamos que o lado mais plasticamente trabalhado, tal como na Rua de Alcolena, é o virado a Oeste, que apresenta, em ambas as casas, o motivo do óculo.


130. António Varela, Alçado Poente da residência construída para José Duarte Moreira Rato e Francisco Vilhena, publicado in Varela, António, “Uma moradia portuguesa”, in A arquitectura portuguesa e a cerâmica e edificação reunidas, revista mensal técnica e artística, Agosto de 1938, nº 41, ano XXX, 3ª série, p. 12.


131. Vista Noroeste da entrada principal da Casa de Rua de Alcolena. Fotografia©Paulo Cintra, Novembro 2008.

No caso da Rua de Alcolena este óculo corresponde, no interior, à janela emoldurada pelos feixes luminosos da estrela de cinco pontas branca, directa e rayonnant.


132. Interior da Casa correspondente à parede Noroeste, com pentagrama pintado e óculo-janela. Fotografia©Paulo Cintra, Novembro 2008.

Gostaríamos de interpretar este motivo decorativo posto por Varela como uma rosa-dos-ventos, apontando sempre para o Oeste, mas vista por fora sinistrorsa, por dentro dextrorsa. Posta em jeito de diafragma entre exterior e interior, a rosa sugere uma osmose entre dois ambientes, o da casa e o do jardim, remetendo para a orientação peculiar da construção face aos pontos Cardeais.

A ligação entre José Manuel e António Varela é atestada pelo poema a ele dedicado:[4]
AS SETE MÁSCARAS

A António Varela.
« La vie est une comédie sinistre… »
Georges Darien
A primeira máscara dizia: Calem-se todos. Todos se calavam. A segunda máscara escrevia anúncios nas paredes: É proibido sonhar.
O poeta esperou toda a vida. Quando morreu, a terceira máscara exclamou: Ousaste demasiado. Obedeceste à pri­meira máscara mas traíste a segunda. Serás castigado com a morte. Morrerás para todos os homens.
Falou em vão. O poeta ressuscitou do outro lado do espe­lho. As sete máscaras reuniram-se em torno da mesa pé-de-galo.
Todas elas pareciam contrariadas. Gesticulavam com desespero. O poeta não cumpria a sentença. Com certeza tinha um pacto com o diabo. A quarta máscara dirigiu-se ao espírito do mal. Que todos os espelhos se quebrem, disse ela. O espírito do mal sorriu e retirou-se. Estava cansado de inutilidades. As sete máscaras indignaram-se muito com ele. Abando­naram a mesa pé-de-galo e dirigiram-se à bruxa. A bruxa recebeu-as com indiferença profissional.
As máscaras entreolharam-se, perplexas. Somos as sete máscaras, as sete, gritaram elas. Pois sim, pois sim, murmu­rou a bruxa, num bocejo. Que quereis afinal? perguntou. Salvar a nossa honra, disse a quinta máscara.Estou muito ocupada, desculpou-se a bruxa. Voltem amanhã.
As sete máscaras encolheram os ombros, com tristeza.
Saíram para a rua e procuraram assustar os pardais. Era um recurso. Esforçavam-se por conservar alguma dignidade. Mas os pardais tinham-se habituado às extravagâncias dos homens. Não se preocuparam.
Que venha uma praga de gafanhotos!, gritou a sexta máscara. Ora os gafanhotos acabavam de ser exterminados segundo os processos mais modernos da técnica.
Foi uma decepção. As sete máscaras tinham perdido toda a autoridade. Sentiam-se desconsideradas perante o mundo. Começaram a gritar por socorro. Nesse momento, imprevistamente, o poeta saiu do espe­lho e procurou auxiliá-las. Francamente estava comovido. A sétima máscara exultou. É o momento da vingança, exclamou ela. Quando o poeta se aproximou, cravou-lhe um punhal no coração. Mas o poeta estava morto. Não podia morrer duas vezes. As sete máscaras tinham-no confundido com um homem. Ora ele era apenas um fantasma. Num instante desmasca­rou-as todas. Transformou-se num espelho e colocou-se em frente delas. Cada uma reflectiu uma imagem semelhante. Afinal todas se pareciam com o poeta. Morreram de pasmo. Eram sete corpos com sete punhais cravados no coração.
Realçamos, neste breve texto, os elementos do silêncio e do sonho, que caracterizam a personalidade extremamente reservada do arquitecto que brilha pela escassez de informações. Uma curiosa coincidência une o texto de José Manuel com a iconografia da varanda pintada por Almada no segundo andar, onde numa mesa pé-de-galo está sentado um par de máscaras.



133. José de Almada Negreiros, Cabaret, varanda do 2º piso da Casa de Rua de Alcolena. Fotografia©Paulo Cintra, Novembro 2008.
http://www.cidadaosporlisboa.org/imgs/imagens/1235081125H7pXU1sp9Hc61QV3.JPG (_CCC4648.tif)

Uma mesa análoga, mostrando uma figura em pose de meditação, foi encontrada no espólio da família Varela. Esse desenho aparenta ser uma reprodução do retrato de Sá Carneiro por Almada.


134. e 135. Desenho anónimo e inédito encontrado no Espólio Varela (Varela?), Fotografia©Paulo Cintra, Novembro 2008 e José de Almada Negreiros, Retrato de Mário de Sá-Carneiro, gravura, 1963, reproduzida em José-Augusto França, Almada: o português sem mestre, Lisboa, Estúdios Cor, 1974, p. 35. Fotografia Neogravura Lda. http://multipessoa.net/media/labirinto/passos-imagens/351.png

Quase uma iconografia da melancolia, esta, que se torna da contemplação pela variante do olhar virado para cima, para as estrelas, para o transcendente. Pelo contrário, um Arlequim melancólico foi assinado em 1922 por Almada, salientando o carácter introspectivo, reflexivo e absorto do filósofo debaixo da máscara, imergido na sua meditação interior.


136. José de Almada Negreiros, Arlequim, 1922, publicado no catálogo da exposição Almada, curada por Margarida Acciaiuoli, Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian (de 27 de Junho a 14 de Outubro de 1984), Lisboa, 1984, [s.l.], fotografia de Mário de Oliveira e Gustavo Leitão, já publicado em Lima de Freitas, Almada e o Número, Lisboa, Arcádia, 1977, p. 34, fotografia de Vítor Santos, Atelier Arcádia.

Estando este Arlequim também sentado numa mesa idêntica às outras é o trait-d’union entre o desenho encontrado no acervo Varela e o azulejo da Casa. É supérfluo lembrar a particularidade da mesa de pé-de-galo ser um meio de comunicação com o transcendente. A mesa escolhida por Almada é, portanto, o elemento que põe em contacto o imanente com o transcendente, o aquém com o além.

O conto de José Manuel dedicado ao arquitecto tem sem dúvida um cariz fortemente esotérico, do qual salientaria apenas dois aspectos: a função do vidro-espelho despedaçado, tal como o vitral, que é composto por fragmentos de vidro reunidos, e a identificação final do sujeito com o objecto da contemplação, fusão, esta, que percorre toda a iconografia da Casa como já dissemos anteriormente.

O convívio entre António Varela e José de Almada Negreiros é atestado pela presença de importantes primeiras edições de livros oferecidos pelo pintor ao arquitecto com dedicatórias muito afectuosas.[5]

Em particular realçamos uma primeira edição da Invenção do Dia Claro, de 1921:


137. José de Almada Negreiros, Capa da primeira edição de A Invenção do Dia Claro, Espólio Varela. Fotografia©Paulo Cintra, Novembro 2008.
https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg1Jh_-Lhc27Mo5gtDRqdMYOyWeeDnANZFeaNVTPtacz25aAJUMyK6C604G0rCKzSCBgSvVVZqchNc30FjdcHATbCZ_dZKkzMf6pE6m1BVWNAUGORkQt6I11nPWrtMTQXLTugfgP5PzK_k/s400/DIA+CLARO.jpg

Uma primeira edição de A Chave Diz: Faltam Duas Tábuas e Meia de Pintura no Todo da Obra de Nuno Gonçalves, 1950

138. José de Almada Negreiros, Capa da primeira edição de A chave diz: Faltam duas tábuas e meia de pintura no todo da obra de Nuno Gonçalves “o pintor português que pintou o altar de S. Vincente na Sé de Lisboa”, Espólio Varela. Fotografia©Paulo Cintra, Novembro 2008.

com dedicatória:


139. José de Almada Negreiros, dedicatória “Ao António Varela com um abraço do seu amigo”, ass., dat. Espólio Varela. Fotografia©Paulo Cintra, Novembro 2008.

Uma primeira edição de Mito-Alegoria-Símbolo -Monólogo Autodidacta na Oficina de Píntura, de 1948



140. José de Almada Negreiros, Capa da primeira edição de Mito-Alegoria-Símbolo, Espólio Varela. Fotografia©Paulo Cintra, Novembro 2008.
https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjtNQzDYPQP0LtIErOfOak7cXJQ9vGvX-F6TMhsV7435dOgxBDibhiItGN2mHvY_H5EQmqw67WiKj8nsMXaYFr9Veg3iD2tMy8h41o8YZlDd0zXsoU0nRLynYPudOIKZFKlXURMra-O7q4/s320/Mito+-+Alegoria+-+S%C3%ADmbolo.jpg

Com uma amigável dedicatória, em tinta verde:



141. José de Almada Negreiros, Dedicatória “Ao António Varela, a quem chamo António como ao meu irmão António”, Espólio Varela. Fotografia©Paulo Cintra, Novembro 2008.

É particularmente significativo, na minha opinião, que três das mais filosóficas obras do pintor, com dedicatórias, se encontrem no espólio do arquitecto, sintoma duma familiaridade que não pode ser ocasional nem formal.
A selar a evidente amizade entre os artistas fica um fino e preciosíssimo desenho, cujo estilo pertence à série da década dos anos ‘10-‘20, até agora inédito:


142. José de Almada Negreiros, Desenho inédito, ass. e dat. (1921). Espólio Varela. Fotografia de Nuno Nazareth Fernandes.

Um desenho dos Acrobatas, 1919


143. José de Almada Negreiros, Acrobatas, 1919, lápis e esferográfica s/papel, 291 x 218, ass. dat., Espólio Varela. Fotografia de Nuno Nazareth Fernandes.

Uma gravura anónima, de dúbia paternidade, provável estudo ou um d’après dos frescos da Gare Marítima da Rocha Conde de Óbidos


144. Anónimo, No Circo, gravura encontrada no Espólio Varela. No verso: “Pertence ao arquitecto António Varela. Queremos ser do Almada Negreiros. Basta ter sido do tio António e ter estado numa exposição por ser um bom quadro. O arquitecto Tinoco está convencido que é do Almada Negreiros”. Fotografia de Barbara Aniello.

este famoso auto-retrato de Almada, assinado, datado e com dedicatória:

145. José de Almada Negreiros, Autoreminescência (auto-retrato), tinta da china s/papel, 190 x 115, ass. dat., ded., Paris 1949, Espólio Varela, Fotografia de Nuno Nazareth Fernandes.

Este último desenho de 1949, intitulado Autoreminiscência, contém o jogo subtil e enigmático da troca entre o “s” e o “c”, aludindo a uma íntima e alusiva conversa entre autor e destinatário. Em particular, o ano e o título do retrato geométrico-simbólico, frisado por duas pupilas gigantes, evidenciando mais uma vez o tema da prioridade da visão, parecem-nos remeter para o tema platónico da Gnose, adquirida através da memória. Segundo Platão, de facto, o Conhecimento não germina na consciência a partir duma tabula rasa, mas é uma faculdade da Alma (Psique) que reproduz ou relembra o que já aprendeu nas passadas vidas, através da sua Reincarnação (Metempsicose).

Em adição aos dados bibliográficos e iconográficos encontrados no espólio Varela, duas fotografias testemunham o convívio entre Almada e o arquitecto Varela, em reuniões com amigos comuns.


146. Fotografia dum jantar com amigos, entre os quais José de Almada Negreiros (terceiro a contar da esquerda), Sarah Affonso (quarta a contar da direita), António Varela (primeiro a contar da direita). Espólio Varela. Reprodução Barbara Aniello.


147. Jantar em honra de Almada, 1941. Entre os convidados, António Varela, de pé à esquerda do artista. Fotografia publicada em Vieira Joaquim, Fotobiografias do Século XX-Almada Negreiros, Bertrand, Lisboa, 2006, p. 147. Fotocompográfica, Lda.

[1] “Varela, António Jorge Rodrigues”, in Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, Verbo, Lisboa, 1980-1986, vol. XXXIV, p. 182.
[2] As datas de nascimento e morte do artista (17/11/1902 - 3/06/1962) foram-nos referidas por Maria do Céu Rodrigues Varela Pimentel de Figueiredo e Maria do Rosário Varela e Baeta da Veiga. A Enciclopédia Luso-Brasileira refere 1/11/1902 e não cita o ano da morte. O Dicionário de Arquitectos Activos em Portugal do século I à Actualidade de José Manuel Pedreirinho, Edições Afrontamento, 1994, menciona o nascimento em 17/11/1902 e relata o ano de morte em 1963, não em 1962, tal como afirmam os familiares.
[3] António Varela, “Uma moradia portuguesa”, in A arquitectura portuguesa e a cerâmica e edificação reunidas, revista mensal/técnica e artística, Agosto de 1938, ano XXXI, 3ª série, pp. 10-13.
[4] José Manuel, As Sete Máscaras, in Eros IX (Fevereiro 1956), op. cit.
[5] Agradeço encarecidamente à Senhora Dona Maria do Céu Pimentel, sobrinha de António Varela, por me ter permitido o acesso e a publicação de parte do espólio do arquitecto.

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