domingo, 20 de dezembro de 2009

Prefácio

… Assim uma peça importante dá entrada nas obras completas de Almada Negreiros, em que andava esquecida ou ignorada.
Teve um acaso feliz esta entrada, que foi de salvamento também, de uma arquitectura votada à perdição patrimonial.
Depois da triste demolição, em Janeiro de 2005, do palacete romântico em que Garrett faleceu, à Estrela, foi possível a outra vereação mais esclarecida e digna de confiança, sob a presidência de António Costa, evitar outra danosa destruição do património lisboeta, pondo em classificação, em 2009, uma moradia modernista ao Restelo, que ia ser demolida e substituída por outro prédio de casas.

Da autoria do arquitecto António Varela nos anos ‘50, projecto de 1951-1955, termo da obra em 1955, a moradia fora revelada por Ana Tostões na sua obra sobre os Verdes Anos da Arquitectura Portuguesa nos Anos ‘50, em 1997, como peça importante e típica, envolvida por um jardim e contendo decorações de azulejo e vitral de Almada Negreiros. No desfazer do edifício, um vitral fora desmontado e felizmente adquirido para colecção da Assembleia da República, em 2001, supondo-se então, num catálogo de leiloeiro, tratar-se da figuração da “Queda de Ícaro”.
Outras peças, de pintura, tapeçaria ou escultura foram dispersas – mas os azulejos continuavam ainda nas paredes, aguardando destino mercantil, mais do que um conjunto de relevos de escultura, de António Paiva que haviam de ter destruição ocorrente.
Um largo movimento de opinião, tendente à salvação da casa, falhado por oportunas influências políticas do proprietário promotor, no caso do palacete de Garrett, teve ouvido responsável na administração municipal, e a obra, na sua totalidade artística, pode ser preservada e provavelmente recuperada – mesmo que, por efeito negocial, o novo proprietário seja autorizado a acrescentar-lhe outro corpo arquitectónico, em duvidosa deontologia por não ter assentimento do arquitecto-autor, falecido em 1963, sete anos antes de Almada Negreiros – e trinta antes do proprietário da casa, o poeta José Manuel Mota Gomes Fróis Ferrão, nascido em 1928.
Estranho proprietário este, homem de fortuna, vivendo com sua mãe, amigo do seu arquitecto e do seu escultor, e de Almada, em grandes frequências, autor de dez livros de poemas, entre 1944 e 1964, de limitadas tiragens e que se perderam bibliograficamente, sem registos de história ou de crítica que ao autor eram certamente indiferentes… Poeta precioso, num simbolismo esotérico, José Manuel (como assinava), dirigiu, ao mesmo tempo que fazia a sua casa, entre 1951 e 1958, quinze números de uma revista de pouco público também, “Eros” – que eu fui lendo na altura…
A Casa, como a poesia, reservava-a ele para poucos e escolhidos amigos, vivendo (é título seu) numa “Alquimia do sonho” que, à sua volta, os espaços internos, e externos também do jardim simbolizado, e as figuras pintadas ou na transparência do vitral de “Eros e Psique”, iluminavam. Apuleio, sim, por evidência, mas também Almada que, em 1949, escreveu os quatro quadros dramáticos do “Mito de Psique” – tendo perdido o último, que a Psique se referia…
Entre a poesia de José Manuel e a poesia pintada ou escrita de Almada, há um encontro vivo, nas linhas do qual se perdem e ganham as referências da casa do Restelo. Ou as suas vivências.

Estudioso da arquitectura moderna, só conheci e mal a casa por fora, melhor me referindo a Ana Tostões; estudioso de Almada, nunca pude visitá-la por dentro – aprendendo agora, com Barbara Aniello, o valor especial da sua decoração. Em 1952, realizando uma exposição de Almada, que há dez anos não expunha, recolhi, sem menção no catálogo, “gouaches” que à moradia em questão já diziam respeito – mais longe não fui (como devia) escrevendo sobre o pintor, em 1974. E as grandes exposições que se realizaram, em 1984 e 1993 do núcleo em questão não se ocuparam.
Coube agora fazê-lo a Barbara Aniello, já com identificação do tema do vitral creditado, em 2007 e 2009, a Cátia Mourão. Para os trabalhos em questão, Barbara Aniello, em boa hora fixada em Lisboa, em 2005, com projectos co-universitários, tem a seu favor uma sólida cultura clássica que lhe vem de doutoramento italiano, em Pádua, depois de uma licenciatura na “La Sapienza” de Roma, dobrados de competência musicológica (e de violoncelista já de longa prática) – que, por exemplo, a levou a um recente e notável estudo da poesia de Jorge de Sena que muito enriqueceu o seu aprofundamento estético.

À parede incisa do “Começar” de Almada Negreiros, por seu lado, dedicou Barbara Aniello uma interessantíssima investigação publicada em 2007.
Através dela a conheci pessoalmente, à vontade ficando para lhe opor reservas, não ao seu excelente trabalho, em si próprio, mas de adequação, na suposição, pela autora assumida, de o artista dispor das referências culturais que ela aponta, para esta obra – que ambos sabemos ser obra maior, na poética portuguesa, testamento espiritual de Almada, “Da Capo”, achei eu, de toda a sua obra. Ou seja da sua vida…
O trabalho sobre a casa do Restelo, conheci-o depois, quando, em Maio de 2009, me enviou cópia do manuscrito convidando-me para um prefácio – que aqui escrevo. Ao mesmo tempo, a autora confiou cópia dele ao Arquitecto José Almada Negreiros, meu amigo de muitos anos por natural via paterna e que agora tive o desgosto de perder – e entrou numa longa corrida de obstáculos para encontrar editor de uma obra de produção necessariamente onerosa, e então intervim, amistosamente, de França, junto do filho Almada, para ele diminuir os direitos de autor das reproduções indispensáveis.
A obra pode sair agora “on-line” por urgência de condições de subsídio da Fundação Gulbenkian, sem a devida apresentação gráfica. Um artigo já saiu (com atraso do número 30) na revista Monumentos – protegida a autora por um registo legal do texto, feito em 3 de Julho de 2009, no I.G.A.C.- Inspecção Geral das Actividades Culturais. Coisa rara num país descuidado como o nosso — mas às vezes necessária. E, como escreveu o próprio Almada, a propósito de idêntica precaução de obra sua, em 1950: “Fizeram isto de mim”…

*

A obra de Barbara Aniello vai entrar na bibliografia almadina como peça de grande valor, na coincidência da salvação das próprias obras do artista, na casa para a qual foram criadas.
É a globalidade da casa que interessa à investigadora, e os seus quatro autores: o poeta José Manuel, o arquitecto António Varela, o pintor Almada Negreiros e o escultor António Paiva, nas devidas proporções das suas intervenções e das suas responsabilidades no programa. Entre poetas, passou a corrente de criação que interessa seguir nesta obra ímpar na arte portuguesa de meados do século XX, e de tão grande importância na maturidade de Almada – e no sentido geral da sua obra.

Não cabe a um prefaciador criticar ou discutir o próprio livro que deve limitar-se a introduzir na sua espécie, assegurando, por sua opinião, os valores que ele carreia.
Barbara Aniello percorre a casa abrindo-lhe as portas com a sua chave esotérica. “Metáfora do mito de Psique” num “tema com variações” que afirma de entrada, epigrafando o primeiro capítulo com citações do “romance poemático” de José Manuel, em 1953 publicado, e escrito que fora, antes, em 1949, “O Mito de Psique” de Almada, sublinha o prefaciador. Que entre os dois textos teve sem dúvida nascimento esta casa propositada. Considerando também outro, de dois anos anterior, que o filosofo Eudoro de Sousa dedicou a Almada, na revista “Atlântico”, por efeito do longo convívio havido entre ele e o artista. Fonte primeira, possivelmente, na exegese da autora, que importa registar para bom entendimento do que se passou – entre um filósofo, um artista e um poeta, com a colaboração maior do arquitecto… obra assim global …

De certo modo, é o romance da casa do Restelo que, entre exegese e ekfrase, Barbara Aniello conta, atenta aos mais escondidos pormenores – da plantação do jardim à planta do edifício, da porta de entrada, com esculturas de António Paiva, exotérica essa, para acolhimento do visitante, e articulada a outro portal, de azulejos almadinos, já esotericamente considerados – para a autora “preludio” ao “Começar” final do artista. E porque não, se ele bem sabia e disse tê-lo feito ao longo de toda a sua vida?...
E a tudo o mais que a casa contém programadamente sempre, na cumplicidade estabelecida e decerto exigida pelo seu encomendador, o poeta José Manuel, empenhado em “transformar o mito poético (de Psique) em realidade” de pedra e cal. Ele próprio assim escreveu, no último número da sua revista “Eros”, em Dezembro de 1958 – terminada a casa que ao início da revista fora projectada. No que deve reparar-se também.
Virada a Noroeste, numa parede da biblioteca preciosa do proprietário, o vitral (que em mãos mercantis perdera o título, que para elas não podia servir – como para os proprietários da embargada demolição…) resume, no seu encontro dramático, de fatal curiosidade, o mito narrado, de Eros e Psique, que deu luz a esta “casa polifónica”…

Alheio a polémicas, intrigas ou historietas, este livro vai cumprir o seu propósito de apresentar uma obra única na história da arte moderna portuguesa.



Jarzé, Novembro 2009



José-Augusto França

Professor Jubilado
Universidade Nova de Lisboa

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