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No fim da nossa viagem, obedecendo ao mandamento de Almada: “primeiro ver!”, depois deste mergulho na visão e deste “cruzamento líquido de olhares”, ficam alguns interrogativos pendentes: quem eram os artistas que participaram nesta obra de arte total que é a Casa da Rua de Alcolena? O que os motivou? Projectaram em conjunto a sua edificação? Que papel teve o comitente? Terá o proprietário influenciado o programa iconográfico da Casa?
A praxis dos artistas trabalharem em conjunto na concepção, projecto e execução do edifício, praxis da qual a Casa da Rua de Alcolena é exemplo cimeiro e ímpar, terá tido um papel não secundário, nesta época histórico-cultural de Portugal, na codificação do ensino integrado das várias artes. Na Escola de Belas-Artes, devido à Reforma de 1957 e até 25 de Abril 1974, era leccionada a disciplina curricular Conjunção das três artes: arquitectura/pintura/escultura. A arquitectura e as artes plásticas (pintura, azulejaria, escultura, cerâmica) eram chamadas a colaborar para a realização duma obra unitária. Esta integração permitia aos artistas das diferentes áreas comunicar e partilhar técnicas, iconografias, métodos.
Os objectivos do programa parecem ser um possível indício do que aconteceu na Moradia do Restelo. Um espelho retroactivo da atmosfera da época é fornecido por um comentário de Leopoldo Almeida na revista Arquitectura, editada em 1968. Assim o autor descreve a colaboração entre artistas:
Até há bem pouco tempo, senão ainda nos tempos que correm, a integração das artes era entendida como uma síntese física dos seus diversos meios de expressão, como uma simbiose de volumes, de superfícies, de texturas, de cores. Os artistas que criavam a obra integrada identificavam-se nas intenções para o que se pressupunha um fundo estético e ideológico comum. A integração torna-se pois neste caso sinónimo de criação colectiva de uma obra na qual, por via de regra, a pintura e a escultura se inserem harmoniosamente, sem conflito, no «meio» arquitectónico ou urbano.[1]
O comentador examina, todavia, as causas da crise do sistema e o seu inelutável declínio, devido à época de “explosão cultural” com consequente “destruição da unidade dos valores estabelecidos e das referências conhecidas”.
O entendimento (fundamentalmente intuitivo) entre artistas tem-se deteriorado progressivamente dando lugar a uma ignorância recíproca dos caminhos que se vão percorrendo, senão mesmo, em certos casos, a formas abertas de antagonismo e de desconfiança. Assim, não é de estranhar que a ideia de criação colectiva constitua, em muitos casos, sério obstáculo à livre expressão individual. Na realidade, a definição «à priori» e rigorosa do objecto a integrar no outro (usualmente a pintura ou a escultura a integrar na arquitectura) confina a colaboração do pintor ou do escultor a um âmbito e método de criação restrito, em parte definido pelo próprio arquitecto.
Por outro lado, como lembra o escultor Domingos Soares Branco, a participação do escultor e do pintor na construção de edifícios públicos e privados era devida a uma postura camarária da época. O escultor e o pintor deviam participar na decoração dos edifícios numa determinada percentagem, embora raramente participassem nas fases de ideação e no projecto, unicamente reservadas ao arquitecto.
Da memória descritiva do projecto deduz-se que foi António Varela a envolver José de Almada Negreiros na decoração da Casa. A amizade entre os dois remontaria pelo menos à década de ‘40, como testemunham as provas encontradas no espólio do arquitecto.[2] Enquanto ambos os artistas já se tinham afirmado no panorama artístico nacional, o envolvimento do jovem António Paiva, que na altura tinha apenas 25 anos, terá sido impulsionado por conhecidos próximos da família da proprietária, Maria da Piedade.[3]
Não obstante a carência de informações ao nosso dispor, ousamos crer que o nosso caso pertence à primeira modalidade, sintética e simbiótica, da integração das artes descrita por Leopoldo Almeida, que não por acaso foi professor de escultura de António Paiva. Mais ainda, a Moradia apresenta-se como um caso extraordinário, excepcional, dada a riqueza, complexidade e, ao mesmo tempo, unidade dos temas. Assim, como numa polifonia, as vozes do pintor, do arquitecto e do escultor interpretaram harmoniosamente a obra, concertando as próprias ideias e afinando as próprias divergências.
[1] Leopoldo C. de Almeida, Comentário sobre a integração das Artes Plásticas, in Arquitectura, Revista de Arte e Construção, n. 101, Lisboa, Janeiro-Fevereiro 1968, pp. 5-6.
[2] Cfr. Almada Negreiros: um percurso possível, INCM, Lisboa, 1993, p. 78.
[3] As presentes conclusões devem-se a entrevistas feitas a testemunhas.
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