domingo, 20 de dezembro de 2009

9.6 As medidas do vitral

Tal como afirmamos no início, a assimetria para Almada Negreiros é o lugar do transcendente e o transcendente é “despertador dos longos letargos humanos”. O vitral não só é assimétrico, ocupando a representação das figuras menos do que 3/5 da cena total, mas também apela à saída do sono, da letargia, da morte, num contexto onde Psique acorda Eros para espiar o seu vulto e, vice-versa, Eros acorda Psique, do torpor estígio. Mais ainda: as proporções do vitral remetem para as da estrela de cinco pontas. O conjunto, que reúne 153 pedaços de vidro polícromo numa moldura rectangular, dividida em 5 painéis, verticalmente ritmados, forma uma composição aparentemente descompassada e desigual. Na verdade há uma regularidade no ritmo irregular deste vitral: nas proporções dos painéis é legível a forma do Pentágono regular, ou Estrela de cinco pontas. A base do rectângulo que congrega os 5 painéis está em razão áurea face à base que liga os últimos três, que enquadram as duas figuras. O primeiro e o terceiro painel, contando a partir da esquerda, são rectângulos áureos.[1]

Assim apercebemo-nos que não só os painéis, em número de 5, remetem para as cinco pontas da estrela, mas as proporções que os governam baseiam-se na regra do número de ouro, pela qual a estrela é construída. De facto, na figura da estrela de cinco pontas, cada lado é dividido pelo outro adjacente, não na sua metade, mas na sua secção áurea. Por isso a Maçonaria deu ao Pentalfa o significado particular de "número de ouro", de "proporção áurea", de medida hermética pela qual a parte menor está em relação com a maior, como a parte está no Todo. Da análise desta estrela descobriu-se que as relações numéricas entre as cinco secções geométricas são reguladas segundo a série de Fibonacci e a regra do número de ouro, cujo valor numérico é aproximadamente 1,618.

A ligação entre as partes e o Todo, o pequeno e o grande, deriva das correspondências da dita Tábua Esmeraldina, citada por Almada na introdução à Invenção do Dia Claro:

— O pequeno é como o grande
— O que está em cima é análogo
ao que está em baixo.
— O interior é como
o exterior das coisas
— Tudo está em tudo.

HERMES TRIMEGISTA[2]
Mas o fascínio de Almada pela Estrela não acaba aqui. Como já vimos na sua pesquisa teórica, ele identifica outras relações numéricas, estabelecendo um lugar para cada um dos algarismos de 1 a 9.


58. José de Almada Negreiros, Os dez lugares da colecção do número, desenho publicado em Mito-Alegoria-Símbolo: monólogo autodidacta na oficina de pintura, Livraria Sá da Costa, Lisboa, 1948, republicado em Almada Negreiros, José de, Ver, notas e prefácio de Lima de Freitas, Lisboa, Arcádia, 1982, p. 260.


Não contente com isto, Almada atribui a cada número um lugar para cada um dos deuses, transformando o pentagrama num escaparate olímpico.


59. José de Almada Negreiros, pentagrama publicado em Lima de Freitas, Almada e o Número, Lisboa, Arcádia, 1977, p. 36. Fotografia de Vítor Santos, Atelier Arcádia, publicado em Aniello, Barbara, “José de Almada Negreiros: do Caos à Estrela dançante”, in Artis, Revista do Instituto de História de Arte da Universidade de Lisboa, n. 6, Lisboa, 2007, p. 348.


Este escaparate dos deuses é desenhado por Almada debaixo dos nossos olhos, no filme-documentário Almada, nome de guerra de Ernesto de Sousa[3] e é também gravado nas paredes da Reitoria da Universidade de Lisboa,


60. José de Almada Negreiros, Pentagrama, Fachada da Reitoria da Universidade de Lisboa. Fotografia de Barbara Aniello.

e é oferecido aos amigos e colaboradores, com escopo didáctico, para explicar a origem do Mito e dos Deuses:[4]


61. José de Almada Negreiros, Pentagrama, tinta da china s/papel, ass. s/d., ded., 27 x 21 cm., publicado no Catálogo da Exposição Colecção Alberto de Lacerda - Um Olhar, editado pela Assírio e Alvim, 2009, p. 32. Depositado na Fundação Mário Soares, Colecção Alberto Lacerda.
http://www.fmsoares.pt/aeb/dossier14/images/08129.377.jpg

De facto, Eros e Psique, ocupando os lugares cruciais, 0 e 1, desta mito-grafia almadina, estão tanto na origem como no fim de todos os mitos e de todos os Deuses. O que nos dá a medida exacta da vital importância que, para Almada, reveste o mito de Psique.

É uma verdadeira obsessão, a de Almada, por este pentágono regular. O artista sofre uma espécie de encantamento, de hipnose, que o leva a contemplar a estrela nas suas obras geométricas e não geométricas. A esse propósito, foi dito que o vitral expressa “de modo exclusivamente figurativo e não geométrico ou sequer combinado” e ainda que “revela plasticamente um conceito gnóstico de raiz não pitagórica e não matemática”.[5] Discordamos de ambas as afirmações, sendo esta obra, na sequência e na coerência da opera omnia almadina, absolutamente geométrica, matemática, pitagórica, filosófica e figurativa no seu conjunto. Se existe um segredo no labiríntico mundo da arte e do pensamento almadino é mesmo a unidade: em Almada o que é geométrico é figurativo e o que é figurativo é geométrico. Distinguir os dois âmbitos significaria atraiçoar a pesquisa de uma vida: a procura dum cânone. E cânone é regra, é razão, é princípio, é unidade. O cânone prescinde das dicotomias, das polaridades, dos binómios. Creio firmemente no percurso único e unitário de Almada, na sua honestidade intelectual e na sua solidão. Quer ele pinte, desenhe, escreva, pense, actue, encene, coreografe, dance, o seu olhar aponta sempre para um só alvo, numa “direcção única”: a busca de um novo eu, de um antigo cânone e de uma futura humanidade renascida.

Na origem dos deuses está a dialéctica Eros-Psique, zero-um, onde zero corresponde a 10, sendo o início e o fim dos 9 algarismos, como explica Almada:
Como zero é contíguo de um e nove, tanto pode começar como terminar os dez
lugares da colecção formada pelo zero e os nove algarismos; e apesar de zero não
ser algarismo, os dez lugares da colecção são consecutivos: a colecção recomeça
sempre até infinito.[6]
Curiosa é a coincidência, embora segundo Almada o acaso não exista, que Psique e Eros ocupem na estrela o mesmo lugar que no vitral. Psique é retratada com a cabeça virada para baixo, como um herói caído. Ela é imagem de Ícaro e Prometeu, ocupando a mesma posição do número 1 no Pentalfa simbólico, desenhado por Almada. Eros, situado por cima dela, é o zero, como a dizer que o Amor é causa e consequência, início e fim de todas as coisas, mortais e imortais.

Ao contrário, Afrodite ocupa o lugar número 5, a ponta virada para o céu. Afrodite é a Deusa Uránia que apadrinha os amores. Almada identifica o 5 com a fecundidade, a fluorescência.


Dos nove algarismos todos são simétricos na sua correspondência visí­vel com a natureza, menos um. Este é o cinco, mas imediatamente é ele pró­prio o centro dos algarismos simétricos, ficando com quatro à direita e ou­tros quatro à esquerda. Por isto mesmo o cinco é o da florescência, como se disséssemos o mais elevado.[7]
E floresceu, de facto, esta estrela de cinco pontas, no fim de um percurso iniciático. Mais adiante, Almada declara que há uma relação entre simetria e transcendência: esta é como magia branca face à assimetria, magia negra. O único que simultaneamente uniu simétrico e transcendente na pessoa individual humana foi Ésquilo com o Prometeu.[8] Depois de ter declarado que “a simetria é a porta da harmonia”,[9] diz:


A geração par é a criadora do antropomorfismo, enquanto a ímpar é a de Prometeu,
a obra do homem. A série dos números é o casamento do Céu e da Terra.[10]
O número cinco, ímpar, número simétrico na década perfeita e número gerador da arte, é símbolo também de Vénus. Na poesia Litoral, em Sudoeste, Almada chama a Vénus “Stella Mattutina”.

É uma ulterior feliz coincidência reencontrar este escaparate estrelado de deuses olímpicos, no baixo-relevo da fachada da reitoria da Universidade de Lisboa. Duas estrelas, idênticas à do desenho aqui em cima, acompanham as figuras de Apolo e Atenas,


62. José de Almada Negreiros, Apolo e Atena, Fachada da Reitoria da Universidade de Lisboa. Fotografias de Barbara Aniello.

juntamente com outros símbolos solares e nocturnos, simetricamente à esquerda e à direita da porta da reitoria.



63. José de Almada Negreiros, pormenor de Apolo e Atena, Fachada da Reitoria da Universidade de Lisboa. Fotografias de Barbara Aniello.


Por consequência, o duplo Pentalfa, um directo, outro invertido, desenhado no início de Começar e gravado nas paredes da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, representa a união de matéria e espírito, bi-presença matéria-espirito.


64.e 65. José de Almada Negreiros, pormenor de Começar, baixo-relevo em pedra, 2.310 x 12.870, ass., dat., Átrio da Fundação Calouste Gulbenkian, Colecção da Fundação Calouste Gulbenkian, reproduzida em Almada Negreiros, Obra Plástica, curadores Arq. José de Almada Negreiros, Rui Guedes, Bertrand, 1993, n. 111. Fotografia de António Homem Cardoso e José de Almada Negreiros, Estrela de Dez pontas, pormenor dos baixos-relevos da Fachada da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Fotografias de Barbara Aniello.


O relevo dado à figura de Prometeu remete para a iconografia do vitral que, no meu entender, alude ao modelo do anjo caído.

[1] Não foi possível medir a obra, por esta estar colocada numa posição inalcançável. Faltando as medidas reais, as minhas conclusões aguardam verificação numa ulterior ocasião.
[2] José de Almada Negreiros, A invenção do dia claro, em Obras Completas, Poesia, op. cit., p. 155.
[3] Ernesto de Sousa, Almada, um nome de guerra, Revolution my body, Lisboa, 1969.
[4] O desenho, exibido na recente Exposição sobre António Lacerda, patente de 08/05/2009 a 29/05/2009 na Fundação Mário Soares, está reproduzido no Catálogo da exposição "Colecção Alberto de Lacerda - Um Olhar", editado pela Assírio e Alvim, 2009, com a dedicatória “Para o Alberto Lacerda, para lhe mostrar na mitologia a história de Eros e Psique”.
[5] Cátia Mourão, op. cit., pp. 268-279.
[6] José de Almada Negreiros, Mito-Alegoria-Símbolo, op. cit., p. 260.
[7] Ibidem, p. 85.
[8] José de Almada Negreiros, Ver, op. cit., pp. 86-87.
[9] Ibidem, p. 215.
[10] Ibidem, p. 216.

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