domingo, 20 de dezembro de 2009

8. A Estrela interior, ou a regeneração de Psique.

O arquétipo da Estrela Flamejante de cinco pontas, que para Almada simboliza o Homem ou, mais exactamente, o «homem regenerado», percorre a casa toda, quer na sua exposição exterior, quer na sua intimidade interior.
Mas é no recolhimento interior da sua casa-alma que o poeta encontra o impulso para o sonho, a renovação, a redenção.
Sonha outro mundo outra vida
recomeça desde dentro
- a salvação és tu[1]
É nas paredes dos aposentos de José Manuel, contíguas à sua biblioteca privada, que reencontramos o duplo pentagrama pintado, desta vez, com a ponta virada para cima e com o vértice rayonnant.


31.e 32. Antecâmara da Biblioteca privada de José Manuel. Fotografia©Paulo Cintra, Novembro 2008.

Seguindo o modelo do Pentagrama de Agrippa e a sua interpretação por Cesare Cesariano,[2]



33. e 34. Pentagrama de Agrippa e Pentagrama de Cesare Cesariano.

Almada retoma este símbolo pitagórico de perfeição humana na parte central da tapeçaria intitulada O Número, 1958.


35. José de Almada Negreiros, O número, 1958, tapeçaria em lã, Manufactura das Tapeçarias de Portalegre, Tribunal de Contas de Lisboa, Colecção Tribunal de Contas de Lisboa, 2600 x 7090, reproduzida em Almada Negreiros, Obra Plástica, curadores José de Almada Negreiros, Rui Guedes, Bertrand, 1993, n. 83. Fotografia de António Homem Cardoso. Publicado em Aniello, Barbara, “José de Almada Negreiros: do Caos à Estrela dançante”, in Artis, Revista do Instituto de História de Arte da Universidade de Lisboa, n. 6, Lisboa, 2007, p. 331.
http://www.educ.fc.ul.pt/icm/icm2000/icm33/images/o_numero.jpg

É minha convicção, de facto, que as obras O Número, no átrio do Tribunal de Contas, e Começar, no átrio da Fundação Gulbenkian, não estejam próximas apenas pela localização, separadas por cerca de um quilómetro e meio de ruas perpendiculares, mas que a primeira seja uma ponte indispensável para o processo de abstracção da segunda.


36. José de Almada Negreiros, Começar, baixo-relevo em pedra, 2.310 x 12.870, ass., dat., Átrio da Fundação Calouste Gulbenkian, Colecção da Fundação Calouste Gulbenkian, reproduzida em Almada Negreiros, Obra Plástica, curadores Arq. José de Almada Negreiros, Rui Guedes, Bertrand, 1993, n. 111. Fotografia de António Homem Cardoso.
http://www.educ.fc.ul.pt/icm/icm2000/icm33/images/comecar.jpg

No seu percurso, Almada fez duas operações fundamentais e opostas: pôs no centro do seu Cosmos regenerado o homem perfeito, a figura humana, espelho davinciano das proporciones divinas e depois anulou essa referência concreta, tangível, substituindo a figura leonardiana pelo Pentagrama antropomórfico.

Esta posição do Homem no esquema simbólico corresponde ao «homem verdadeiro», expressão máxima das possibilidades inerentes ao homem como homem, nível onde se completam os chamados «pequenos mistérios»; corresponde, ainda, ao grau de mestre das iniciações profissionais, tais como as dos construtores das catedrais da Europa. Compasso e esquadro, «Céu» e «Terra», círculo e quadrado, encontram no «homem verdadeiro» o termo médio de conciliação e fusão: o «arquitecto» surge, pois, revestido da qualidade de iniciado capaz de reconstituir o modelo do Universo onde os dois princípios incomensuráveis se casam, ou ainda de «artista» - no sentido alquímico do termo - operando a união do círculo e do quadrado numa figura única, a verdadeira «quadratura do círculo».[3]
No meu entender, no quádruplo Pentalfa, duplamente presente exterior e interiormente, de modo invertido e directo, esconde-se a queda e a regeneração, a punição e a expiação de Psique. A de Psique é uma dupla queda, narrada pelo mito e representada no duplo Pentalfa invertido do portal.

Em primeiro lugar, para se unir ao seu misterioso amante, como narra Apuleio:
 Do alto de um rochedo desce a um vale delicioso onde se ergue um palácio encantado.[4]
Em segundo lugar, para expiar a culpa por ter visto o vulto de Eros. Psique, atrevida observadora de Eros, é constrangida por Vénus, numa das suas provas de purificação, a percorrer as trevas do Mal. Mas na sua queda, também, vislumbra-se a queda de Prometeu, de Ícaro, de Lúcifer: ela cai, para ressurgir à luz do intelecto. Neste sentido Psique é paradigma da iniciação e emblema do iniciado. De facto, lembra-nos Almada, é necessária a queda, para alcançar a apoteose:
É o que o mundo não entende: que o imortal passe pelas entranhas da terra.[5]
[1] José Manuel, Transfigurações, dedicado a Eduardo Viana, in Eros V-VI (Outubro 1953), op.cit., V-VI, 8.
[2] Cfr. Barbara Aniello, op. cit., p. 338.
[3] José Manuel, Alquimia do sonho, op. cit., pp. 125-127.
[4] Apuleio, Metamorfoses, in De Sousa, Eudoro, Quem vê Deus, morre, op. cit., pp. 7-8.
[5] José de Almada Negreiros, O mito de Psique, op. cit., p.172.

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