domingo, 20 de dezembro de 2009

1. Unidade e Metamorfose duma Casa polifónica.

A moradia situada na Rua de Alcolena nº28/44 constitui um dos mais raros e belos exemplos de diálogo inter-artes em Portugal no século XX. A residência, integrada no Bairro da Encosta da Ajuda, dito Bairro do Restelo, projectada em 1951-1955 por António Varela para Maria da Piedade Figueiredo Mota Gomes e para o seu filho José Manuel Mota Gomes Fróis Ferrão, integrava onze paredes revestidas de azulejos e um vitral da autoria de José de Almada Negreiros, uma escultura e dez baixos-relevos de António Paiva e, na sua origem, um conjunto de pinturas, tapeçarias, esculturas, para o interior da casa, sucessivamente disperso em leilões. Belíssimo vestígio de arquitectura modernista, recentemente a casa foi objecto de candente actualidade, tendo sido alvo de um projecto de destruição com parcial remoção dos painéis em azulejo.

A íntima correspondência entre arquitectura e decoração, fruto duma extraordinária colaboração entre artistas e proprietários, resulta numa obra de arte que constitui um unicum, não só pela sua vocação inter-artística, mas também pelo programa unitário e pela linguagem comum nela revelados.

Da leitura integrada das suas várias componentes artísticas, emerge que a casa é uma metáfora do mito de Psique, contendo um conto coeso e coerente, quase um Tema com Variações, das suas metamorfoses. Psique está, segundo a nossa leitura, alegoricamente presente em todas as obras plásticas que adornam a residência, enfatizando alternadamente o tema da queda, da visão ou contemplação divina, do conhecimento superior (gnose) e da iniciação aos mistérios com ele relacionados. Com base nestas premissas, o presente estudo envolverá questões de exegese[1] e de ekphrasis,[2] à procura por um lado das fontes literárias na raiz do seu programa iconográfico e, por outro, dos textos inspirados nas obras figurativas, uma vez realizadas. Ao longo deste percurso traçar-se-á uma dupla análise da habitação e das obras nela contidas, discernindo entre uma componente exotérica e uma esotérica,[3] com o intuito de identificar acessos e zonas destinadas à recepção dos visitantes e zonas reservadas a um restrito grupo de amigos e colaboradores do proprietário.

[1] O termo exegese deriva do grego e é composto por ek (de, fora) e egéomai (tiro, conduzo) e indica o trabalho de ex-trair, ex-ternar, ex-por o significado profundo dum texto, literário, jurídico, religioso, visando a sua interpretação profunda.
[2] O termo ekphrasis vem do grego e é composto por ek (de) e phrazein (falar), indicando literalmente um “falar de”, “falar a partir de” um modelo. Trata-se dum processo típico da descrição, que tem raízes clássicas, tal como lembra, na sua Ars Retórica, Dionísio de Halicarnasso. A história do termo ekphrasis tem sido acompanhada por Carlos Ceia no seu E-Dicionário de termos literários: “O termo ekphrasis tornou-se um exercício escolar para aprender a fazer descrições de pessoas ou lugares. O locus classicus na literatura épica é a descrição do escudo de Aquiles feita por Homero (Ilíada, 18, 483-608). Virgílio seguiu o mesmo modelo para a descrição do escudo de Eneias na Eneida (8, 626-731). Um outro tipo de ekphrasis concentra-se em descrições epigramáticas de pinturas e estátuas, como La galeria de Marino e muita poesia emblemática. O termo alemão Bildgedicht corresponde praticamente ao conceito de ekphrasis, neste sentido de descrição de uma obra de arte (pintura ou escultura). Os poetas românticos recorreram amiúde a este artifício, tendo ficado célebre, por exemplo, a "Ode on a Grecian Urn", de Keats. Naturalmente, o recurso às descrições particulares está presente em muita poesia contemporânea, sobretudo a partir do momento em que a poesia se tornou cada vez mais próxima da prosa narrativa. Na literatura portuguesa, o livro Metamorfoses (1963), de Jorge de Sena introduz um tipo de poesia descritiva que tem como objecto de contemplação toda a obra de arte visual. Este tipo de descrição plástica não limita o conceito de ekphrasis a uma simples e passiva exposição dos dados observados, mas conduz-nos a um exercício reconstrutivo do que foi examinado, querendo interferir subjectivamente nas qualidades do objecto. O poeta ecfrástico raramente se contenta com uma descrição objectiva do que observa, quando tem a possibilidade de comunicar livremente o seu próprio gosto. A Secreta Vida das Imagens (1991), de Al Berto, ou Depois de Ver (1995), de Pedro Tamen, podem ilustrar o lado dinâmico da ekphrasis”. Cfr. http://www2.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/E/ekphrasis.htm. Veja-se também: Emilie L. Bergmann: Art Inscribed: Essays on Ekphrasis in Spanish Golden Age Poetry (1979); Fernando J. B. Martinho: “Ver e depois: a poesia ecfrástica em Pedro Tamen”, Colóquio-Letras, 140/141 (1996); Maria Fernanda Conrado: Ekphrasis e Bildgedicht: processos ekphrásticos nas metamorfoses de Jorge de Sena, Tese de mestrado, Universidade de Lisboa (1996); Murray Krieger: Ekphrasis: The Illusion of the Natural Sign (1992).
[3] A diferença entre os termos exotérico e esotérico deriva da filosofia de Pitágoras que distinguia no seu ensinamento entre um saber acessível a todos, visível, comum, popular (éx = fora) e um conhecimento reservado a poucos eleitos, (eso = dentro). Assim os seus discípulos eram designados e distinguidos entre exotéricos, ou alunos externos à sua escola, e esotéricos, os alunos admitidos no interior da sua escola, os únicos que podiam ver e ouvir as aulas do filósofo. Entre estes havia uma ulterior distinção entre esotéricos-acousmáticos, que podiam só ouvir o Mestre, e esotérico-matemáticos, que tinham o privilégio de argumentar com ele e também ensinar aos acousmáticos. O presente estudo pretende utilizar esta definição, com o intuito de distinguir entre uma componente explícita, divulgativa, exposta e uma mais reservada, íntima, privada, na fruição da casa.

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