domingo, 20 de dezembro de 2009

4. Uma arquitectura dissimuladamente racional. Psique e a harmonia dos opostos.

Começando pela implantação da Casa, notamos que esta é originada pela junção desfasada de um quadrado e um rectângulo, formando uma figura geométrica irregular, testemunho de uma plasticidade típica do racionalismo do Movimento Moderno.


2. António Varela, Obra 23293, Processo 35792/1951, Folha 14, Arquivo Municipal de Lisboa.

Como se lê na memória descritiva da Casa, redigida pelo arquitecto António Varela, a estrutura articula-se em três pisos: a cave, com as dependências destinadas ao pessoal de serviço, a arrumos e à instalação de equipamento de aquecimento-chauffage e à água;


3. António Varela, Obra 23293, Processo 35792/1951, Folha 52, Arquivo Municipal de Lisboa.

o rés-do-chão para as dependências destinadas às necessidades da vida quotidiana: zonas de recepção, estar, refeições, fruição de espaço;


4. António Varela, Obra 23293, Processo 35792/1951, Folha 52, Arquivo Municipal de Lisboa.

o primeiro andar destinado ao repouso e recolhimento dos proprietários, coroado por um terraço com vista panorâmica sobre o Tejo.[1]


5. António Varela, Obra 23293, Processo 35792/1951, Folha 52, Arquivo Municipal de Lisboa.

Quanto ao aspecto exterior da casa, notar-se-á que o alçado se ergue numa posição sobrelevada em relação à rua. A moradia é abraçada por um vasto jardim, que emoldura a construção, atenuando a sua aparência abstracto-geométrica e o seu purismo volumétrico. Notamos uma preocupação simétrica na disposição da garagem, com duplas janelas e duplas escadas, especularmente à esquerda e direita, contradita da solução arquitectónica, deslocada ligeiramente à direita do eixo vertical sugerido pelo acesso da rua ao jardim. A coincidência desta preferência pela assimetria, no ideário do arquitecto, do proprietário e do pintor é bastante singular, como explicaremos adiante.


6. Vista principal, virada a Sudoeste, da Casa da Rua de Alcolena. Fotografia©Paulo Cintra, Novembro 2008.

Através dum jogo entre claro e escuro, cheio e vazio, duro e mole, mineral e vegetal, deparamo-nos com um tapete em xadrez disseminado na encosta do terreno sobrelevado e realizado com quadrados de pedra calcária, alternados com porções de idêntica dimensão de terra, anteriormente arrelvadas. O padrão axadrezado prolonga-se no muro que delimita o confim esquerdo da moradia. Confrontando as fotografias antigas do muro da casa com as actuais, notar-se-á um idêntico claro-escuro que repetia originariamente a alternância patente na entrada.


7. Fotografia antiga da Casa. Espólio Varela. Fotografia©Paulo Cintra, Novembro 2008.

Da análise das fotografias antigas da casa, emerge um surpreendente duplo tapete de xadrez: à manifesta alternância lúcido-opaco dos cubos em pedra e relvado, junta-se o jogo em claro-escuro dos seixos brancos e acinzentados. Desenha-se, assim, por sobreposição, uma impressão óptica de dois xadrezes: um em primeiro plano, de pedra-relva, manifestamente claro, e um em segundo plano, de pedra-pedra, formando um jogo bicromático mais encoberto e críptico: manifestação do duplo, exotérico e esotérico. Posteriormente, o muro foi repintado, apagando-se assim a continuidade do desenho em xadrez que fazia de elo entre o exterior e o interior, acompanhando a passagem do visitante desde a rua até à entrada.


8. Pormenor da Fotografia antiga da Casa. Espólio Varela. Fotografia©Paulo Cintra, Novembro 2008.

A alusão do pavimento-mosaico ao sagrado é evidente. Os quadrados lúcidos e opacos encaixam-se na bipolaridade luz-trevas, bem-mal, negativo-positivo, unidade-duplicidade, corpo-espírito. Essa bipolaridade está presente em toda a simbologia desta obra de arte que é a Casa. A complementaridade da cor branca e da cor preta, presente no templo sagrado e na entrada da moradia, reflecte a confluência entre activo e passivo, masculino e feminino, solar e terrestre, num intenso diálogo com a decoração interior e exterior da casa. Assim, a procura da harmonia cósmica passa, curiosamente, através dum disfarçado jogo com o “assumido radicalismo” dum volume “puro, cúbico, afirmativamente colocado no alto do terreno”, “com rigorosa geometria plasticamente trabalhada”[2], do edifício de António Varela.


9. Alçado Sudeste e Nordeste da Casa da Rua de Alcolena. Fotografia©Paulo Cintra, Novembro 2008.

Neste propositado diálogo entre irracional e racional, entre espírito e lógica, entre gnose (conhecimento intuitivo) e epistéme (conhecimento científico) é tecido o significado unitário de toda a obra. O pavimento, tal como a construção, simboliza a união entre o eixo vertical (celeste) e o eixo horizontal (terrestre), ou seja o Tempo e o Espaço, o Universal e o Particular.
Por isso mesmo, a construção, aparentemente racionalista, é na sua essência completamente mística, aderindo à componente esotérica de acordo com os interesses do comitente

A natureza odeia a monotonia, a simetria. O absoluto reflecte-se na alma e transfigura-se em inumeráveis formas, diferentes todas, semelhantes todas...[3]
Em qualquer dos casos o racionalismo é uma posição extrema, - quase patética. Tu sabes. Tudo era assimétrico em ti.[4]
e em coincidência com os de Almada também:
Este é o princípio da Simetria, palavra que não é grega, mas formada com duas palavras gregas (sim + métron = com medida), e não significa o que por ela correntemente se entende. A palavra grega que corresponde ao que devia ser a Simetria, e não o que por ela se entende, é Tekné. [5]
A simetria cujo nome verdadeiro é Magia Branca e em oposição a Magia Negra que é transcendentalista, não se resume à combinação das linhas simples ou à dos algarismos entre si […]
Chamando Magia Negra ao transcendentalismo, parecerá pejorativo, o caso é, porém, que o transcendentalismo tem artes para estar constantemente a sair da sua magia negra […]
O transcendente é indubitavelmente o despertador dos longos letargos humanos, mas os marcos no caminho do Homem vão sendo postos em seguimento, pessoa em pessoa, pela simetria.
Tudo quanto se passou no mundo, se passa e se passará, é o desta dualidade humana da simetria e do transcendente.[6]
Significativa é, nesse contexto, a declaração de José Manuel Ferrão[7] acerca da predilecção pelo natural-assimétrico face ao racionalismo-simétrico.

António Varela terá tido em consideração os gostos do proprietário, optando por uma estrutura veladamente racionalista e sensivelmente assimétrica. De acordo com o proprietário e o arquitecto, Almada privilegia uma estética “outra”, diferente, procurando na “assimetria” o transcendente e na “simetria” a relação entre as partes e o Todo.

Almada procurará na sua última obra, Começar, 1968-1969, verdadeiro testamento gravado na pedra do átrio da Fundação Gulbenkian, uma Simetria sensível, uma Medida secreta, uma Cifra pessoal, desenhando no centro um Pentalfa e realizando uma simetria assimétrica, onde a estrela ocupa um lugar mais à esquerda do ponto de intersecção das diagonais com origem nas extremidades do painel.[8]

É significativo que num contexto como o da casa, tecido em torno do mito de Psique, Almada diga que o transcendente, ou a assimetria, é “despertador dos longos letargos humanos”, de acordo com o tema do vitral por ele concebido sob encomenda de José Manuel.

Mais ainda. Na escadaria de entrada, perto da assinatura do Arquitecto António Varela, com a data de inauguração e dedicatória da Casa, coincidente com o aniversário do filho da proprietária, 10 de Fevereiro de 1954, encontra-se uma outra inscrição que reporta a frase de Paul Éluard: La maison s’éleva comme un arbre fleurit, referência programática ao significado simbólico da construção.



10. e 11. Epígrafes com citação de Paul Éluard e assinatura do Arquitecto com data. Fotografia©Paulo Cintra, Novembro 2008.

Colocada numa cota de terreno sobrelevada, a Casa ergue-se em relação ao nível da rua, mas ergue-se ao contrário, de cima para baixo, como uma árvore invertida: as raízes, que estão no alto, são representadas pelos respiradores e chaminés no terraço e as flores estão geometricamente “implantadas” no pavimento em mosaico na entrada do jardim. Desta maneira explicar-se-á a enigmática função duma chaminé fingida no terraço, que não tem qualquer ligação com o interior da casa,


12. Chaminé fingida no telhado da Moradia. Fotografia©Paulo Cintra, Novembro 2008.

como também do retículo do alçado Nordeste, que corresponde, no interior, à escada que liga os andares. O jogo rítmico e geometricamente trabalhado deste bordado remete, ao nível simbólico, para o desenho dum tronco de árvore.


13. Alçado Nordeste da Casa da Rua de Alcolena. Fotografia©Paulo Cintra, Novembro 2008.

A trama vegetal que percorre a escada é muito mais palpável nas alterações de 1955, que no desenho original de 1951:


14. António Varela, Obra 23293, Processo 2306/1955, Folha 11, Arquivo Municipal de Lisboa.


15. António Varela, Obra 23293, Processo 35792/1951, Folha 53, Arquivo Municipal de Lisboa.

É significativo encontrar no espólio familiar do proprietário uma foto de Dona Maria da Piedade, retratada em pose de inspiração poética, junto das duas inscrições. A referência à árvore, a assinatura do arquitecto e a imagem da proprietária estabelecem uma triangulação de significados e alusões filosóficas que não nos podem deixar indiferentes.

16. Dona Maria da Piedade. Fotografia gentilmente cedida por Madalena Ferrão. Espólio familiar. Fotografia©Paulo Cintra, Novembro 2008.

O símbolo da árvore invertida pertence ao Neoplatonismo esotérico e foi utilizado em muitas outras correntes espirituais. O seu esquema, com as raízes metafísicas viradas para o alto, o seu tronco único e os ramos voltados para baixo, mostra como todas as manifestações temporais e particulares estão ligadas a uma unidade universal. Tal como a Tábua esmeraldina, que recita o que está em cima é análogo ao que está em baixo, a árvore invertida sublinha uma reciprocidade entre o mundo das esferas e o mundo empírico. Todas as coisas materiais têm origem nas Ideias, ou seja, no Universal.

Curiosamente, entre os raros vestígios da obra do escultor António Paiva, que colaborou na decoração do portal principal, encontramos a imagem duma árvore invertida numa medalha cunhada em 1970[9] e no seu desenho preparatório:

17. António Paiva, Medalha em bronze, 80 mm, cunhada, 1970 para a Comissão de Construções Hospitalares, Hospital de Beja. Colecção particular. Fotografia de Barbara Aniello.



18. António Paiva, desenho preparatório para a Medalha em bronze, 80 mm, cunhada, 1970 para a Comissão de Construções Hospitalares, Hospital de Beja. Espólio Paiva. Fotografia de Barbara Aniello.

Em particular, no desenho o tronco e as raízes erguendo-se formam uma figura antropomorfa de braços estendidos em cruz.

A tentativa de harmonizar os opostos visualizados no pavimento em mosaico, na referência da inscrição à árvore, na arquitectura místico-racionalista, na colocação do edifício fora do eixo, corresponde ao simbólico acesso do iniciado, em busca da unidade perdida. A Alma, ou Psique, ao aproximar-se da casa, sente-se, graças a toda uma série de indícios, impulsionada a superar os obstáculos e as oposições derivadas do “Duplo”, claro-escuro, ortogonal-curvilíneo, simétrico-assimétrico, até, finalmente, compreender e alcançar a “Unidade”.

[1] Obra 23293, Processo 35792/1951, Arquivo Municipal de Lisboa. Cfr. também a petição on-line promovida pela Ordem dos Arquitectos «É preciso salvar a Casa da Rua Alcolena, da autoria do arquitecto António Varela, com murais de azulejo da autoria do pintor Almada Negreiros», http://www.petitiononline.com/Alcolena/, op. cit.
[2] Ana Tostões, op. cit., p. 60.
[3] José Manuel, Alquimia do sonho, op. cit., p. 35.
[4] Ibidem, p. 28.
[5] José de Almada Negreiros, Ver, notas e prefácio de Lima de Freitas, Lisboa, Arcádia, 1982, p. 84.
[6] Ibidem, pp. 86-87.
[7] O Dr. José Manuel Ferrão, poeta, artista, editor, músico, escolheu assinar os seus trabalhos com um simples “José Manuel”. Por isso, daqui em diante referir-nos-emos a ele apenas pela sua assinatura.
[8] Barbara Aniello, José de Almada Negreiros: do Caos à Estrela dançante, in "Artis", Revista do Instituto de História de Arte da Universidade de Lisboa, n. 6, Lisboa, 2007, p. 347.
[9] Devo à generosidade e disponibilidade do professor, escultor, coleccionador João Duarte a publicação destas medalhas de sua propriedade e a partilha de importantes notícias acerca da actividade de António Paiva, do qual chegou a ser aluno na Escola de Belas Artes nos anos 1974-1976. Cfr. João Duarte, Um percurso na medalha em Portugal, fotogr. José Viriato; concepção gráfica Andreia Pereira, Universidade de Lisboa, 2005, pp. 1-26.

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