domingo, 20 de dezembro de 2009

14.3 José Sobral de Almada Negreiros

Caso único em Portugal no século XX, José de Almada Negreiros encarnou as mil faces da arte. Não só reflectiu, escreveu, desenhou, pintou, esculpiu, coreografou, criticou, encenou, mas também soube fazer de todas as suas experiências um unicum, uma coisa só: a permanente busca de um novo eu e de uma nova humanidade renascida e regenerada. Verdadeiro fil-rouge do fenómeno inter-artes em Portugal no século XX, Almada percorre transversalmente todas as artes, desenvolvendo um constante e fecundo diálogo entre literatura, pintura, escultura, arquitectura, dança e teatro, e encontra no poder mágico e esotérico do número a chave unificadora da sua multiforme actividade. Clássico e moderno, antigo e contemporâneo, o artista estudou e recolheu a herança do passado, reflectiu-a no presente e projectou-a no futuro. A centralidade do Homem, alvo de toda a sua pesquisa, faz de Almada um humanista, herdeiro de Leonardo da Vinci e, ao mesmo tempo, um artista actual da Pós-Renascença.

Figura incontornável do panorama artístico português, em setenta e sete anos de vida Almada produziu uma obra extensa e multifacetada, abrangendo as mais importantes correntes do século XX: foi desenhador caricaturista e humorista, poeta, pintor, romancista, colaborador da revista Orpheu e da revista Portugal Futurista, cenógrafo, coreógrafo, bailarino, figurinista, dramaturgo, actor de cinema, jornalista, conferencista, decorador, crítico de arte. Para uma biografia detalhada do autor remete-se para os estudos já concluídos na área,[1] basta aqui realçar o significado que teve no seu percurso artístico a encomenda dos painéis e do vitral para a decoração da Casa da Rua de Alcolena.

No que respeita aos painéis, o trabalho de Almada insere-se no dito “Renascimento do Azulejo”[2], devido ao interesse de arquitectos e decoradores que, no final das décadas dos anos ‘30 e ‘40, reagiram contra a proibição de revestir as fachadas dos prédios lisboetas e contra o abandono da técnica tradicional do azulejo. Paralelamente a artistas como Jorge Barradas e Júlio Santos, Almada Negreiros realiza em 1949 um revestimento azulejar para um edifício da autoria do arquitecto Porfírio Pardal Monteiro com relevos de Jorge Barradas, executado na Fabrica de Viúva Lamego, localizado na Rua do Vale do Pereiro em Lisboa. Na sua memória descritiva, o arquitecto fala nos azulejos como “expressão do espírito novo”, ligado a uma antiga tradição, definindo-o como o “ressurgimento duma indústria tão portuguesa, como é a da cerâmica na sua aplicação à construção civil”[3]


167. Porfírio Pardal Monteiro, José de Almada Negreiros, Jorge Barradas, Prédio na Rua do Vale do Pereiro em Lisboa. Fotografia de Laura Castro-Caldas.
http://i.pbase.com/o6/21/4921/1/37856136.PMet4JyU.Lisboa_Sao_Mamede3412.jpg

A união da antiga tradição portuguesa com uma estética nova e inovadora é visível no traço almadino, nas linhas onduladas e nervosas nas quais se movimentam os losangos, quase a derramar os próprios contornos numa lagoa verde-desbotada constelada de pintinhas brancas. A solução dinâmica encontrada por Almada dissolve o risco dum desenho rigidamente geométrico, que no seu revestimento total poderia ter pesado na leveza do edifício, o qual resulta, pelo contrário, extremamente plástico e quase ascendente na verticalização dos motivos.


168. Porfírio Pardal Monteiro, José de Almada Negreiros, Jorge Barradas, pormenor do prédio na Rua do Vale do Pereiro em Lisboa. Fotografia de Laura Castro-Caldas.
http://i.pbase.com/o6/21/4921/1/37856135.pLh0kK16.Lisboa_Sao_Mamede3417.jpg

Contudo, é difícil perceber como do azulejo de padrão se passou ao azulejo figurativo no revestimento arquitectónico português no século XX. A investigadora Suraya Burlamaqui explica que foi a influência brasileira a operar o salto estético que levou à recuperação do azulejo figurativo de tradição portuguesa na produção de grandes painéis para a Avenida de Infante Santo, as estações Metro, o Hotel Ritz. No âmbito do II Congresso da União Internacional de Arquitectos realizado em Setembro de 1953, em Lisboa, face ao mutismo total dos arquitectos portugueses relativamente à questão do azulejo, surgiu um coro unânime de artistas brasileiros que já há algum tempo trabalhavam nesta direcção. A exposição de trabalhos de Cândido Portinari, Roberto Burle Marx, Volpi, Zanini, Paulo Rossi provocou nos portugueses “uma autêntica revolução”.[4]

O caso da Rua de Alcolena inserir-se-ia nesta onda, se não fosse por uma anterioridade de datas. As experimentações de Almada na cerâmica remontam aos anos ‘50, o que faz dele sem dúvida um pioneiro da técnica azulejar, talvez impulsionado pela pintora Sarah Affonso, sua esposa, hábil ceramista, precursora da redescoberta do azulejo no movimento moderno e frequentadora da Fábrica Viúva Lamego desde 1945.[5]

Do ponto de vista técnico, um forte impulso experimental marca a sua intervenção datada de 1953 na Casa. Em particular Almada serve-se de três técnicas diferentes:
a técnica “do tubo”, a técnica “em alicatado” e a faiança policromada.

A primeira foi empregue para o painel Cabaret, no segundo piso, onde a decoração é feita através de um tubo que liberta um cordão de vidro, a segunda foi executada pelo Mestre António de Sousa, para o painel do Portal esotérico, à terceira técnica pertencem os outros painéis.[6]

Ainda mais interessante é confrontar os desenhos preparatórios, na posse de Mestre Sousa, que apresentam evidentes desvios iconográficos face à versão final, como no caso deste emblema aquático-vegetal-musical, na parede esquerda do terraço do piso superior, substituído pelo casal sentado na mesa de Cabaret, segundo uma interpretação mais conforme com o repositório de imagens do pintor. Este desenho é significativamente selado em baixo por um motivo em xadrez, formando um duplo jogo de mosaico com a parede contígua. Na versão final, este elemento desaparece, substituído por um pavimento em quadrados de uma uniforme cor verde, fingindo um azulejo no azulejo. Almada apaga, assim, a referência inicial ao mosaico que na origem devia, dupla e hermeticamente, sigilar a casa no seu ponto mais baixo, o jardim, e no mais alto, o tecto: o que está em cima é análogo ao que está em baixo.


169. José de Almada Negreiros, desenho preparatório para o painel do 2º piso da Casa da Rua de Alcolena. Fábrica Viúva Lamego. Publicado in Suraya Burlamaqui, Cerâmica mural portuguesa contemporânea: azulejos, placas e relevos, Quetzal editores, Lisboa, 1996, p. 37.


170. José de Almada Negreiros, desenho preparatório para Cabaret, painel do 2º piso da Casa da Rua de Alcolena. Fábrica Viúva Lamego. Publicado in Suraya Burlamaqui, Cerâmica mural portuguesa contemporânea: azulejos, placas e relevos, Quetzal editores, Lisboa, 1996, p. 37.

Um azulejo avulso, representando uma figura deitada, está em Bicesse na Casa-Atelier do autor e é possivelmente um estudo preparatório para o casal deitado em frente da janela, realizado por Almada no terraço inferior da Casa.


171. José de Almada Negreiros, azulejo, Casa-Atelier em Bicesse, publicado in Suraya Burlamaqui, Cerâmica mural portuguesa contemporânea: azulejos, placas e relevos, Quetzal editores, Lisboa, 1996, p. 38.


172. José de Almada Negreiros, pormenor do painel do 1º piso da Casa da Rua de Alcolena. Fotografia©Paulo Cintra, Novembro 2008.
http://www.cidadaosporlisboa.org/imgs/imagens/1235081128W7uXO5am1Ri35HP1.JPG (CCC4603.tif)

De resto, a figura virada de costas contemplando o horizonte é uma constante na iconografia almadina. Amiúde o artista utiliza este tipo de jogo entre a geometria da janela e o corpo geometrizado, entre a moldura-diafragma que une dois mundos e a presença humana emoldurada e fragmentada no limiar exterior-interior, herdando, muito provavelmente, este tema da linguagem cubista e futurista das primeiras vanguardas europeias.


173. José de Almada Negreiros, Nu à janela, gouache, 1946, 48 x 34, ass. dat., colecção particular, publicado no catálogo da exposição Almada, curada por Margarida Acciaiuoli, Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian (de 27 de Junho a 14 de Outubro de 1984), Lisboa, 1984, [s.l.]. Fotografia de Mário de Oliveira e Gustavo Leitão.

Sucessivamente, Almada decora a Livraria Ática com azulejos, actualmente no Museu da Cidade, que partilham com a Casa a cor preta de fundo, coisa inabitual para a época.


174. José de Almada Negreiros, painel de azulejos para a Livraria Ática, publicado in Almada Negreiros: um percurso possível, INCM, Lisboa, 1993.

Em 1956 Almada projecta os painéis esgrafitados para a Escola Patrício Prazeres em Lisboa. Nunca realizados em cerâmica, os murais aludem ao desporto e à aprendizagem, com figuras masculinas retratadas em exercícios gímnicos e figuras femininas contemplando um simbólico globo. Visualização, quase, do ditado Mens sana em corpore sano, estas obras parecem plenamente inseridas no programa do Estado Novo.


175. e 176. José de Almada Negreiros, estudos para azulejos da Escola Patrício Prazeres, Lisboa, 1956, publicados in Suraya Burlamaqui, Cerâmica mural portuguesa contemporânea: azulejos, placas e relevos, Quetzal editores, Lisboa, 1996, p. 39.

Nos anos ‘60, Almada volta a revestir uma residência privada de azulejos. Trata-se duma moradia inteiramente recoberta de motivos geométricos, “uma composição modular, de um só módulo que, utilizado em posição inversa e em jogo de cores, produz, através da junção de quatro azulejos, um desenho de linhas que se cruzam em diagonal sobre fundo de losango (sempre o losango do arlequim) e folhas estilizadas em cruz”.[7] Curiosamente esta casa encontra-se na Rua de Alcolena, fisicamente a pouca distância da outra, no número 36, mas qualitativamente longínqua com respeito à de António Varela.


177. e 178. José de Almada Negreiros, azulejos para a moradia na Rua de Alcolena, nº 36, publicados in Suraya Burlamaqui, Cerâmica mural portuguesa contemporânea: azulejos, placas e relevos, Quetzal editores, Lisboa, 1996, p. 38.

No que respeita ao vitral, executado para a biblioteca privada de José Manuel, Almada enfrenta um desafio duplamente insólito e único ao longo do seu percurso de artista: trata-se da primeira e única encomenda privada para um vitral de tema profano e não sacro.

Com excepção feita pelo tríptico de painéis envidraçados para os Salões da Fábrica de Fogões Portugal, 1948 e para o conjunto de vitrais para a sede do Tribunal de Contas, Almada ocupar-se-á da técnica do vitral exclusivamente no âmbito da arquitectura religiosa. Em todo o caso, nunca realizará um vitral para fruição privada com tema mitológico ou profano.

Depois da realização dos vitrais para a Igreja de Nossa Senhora de Fátima, concluídos em 1938, com o arquitecto Pardal Monteiro, onde encontramos a já referida Trindade, Almada executará os Vitrais para o Seminário Maior de Cristo-Rei, nos Olivais em 1950, ainda em parceria com o arquitecto. A colaboração com Pardal Monteiro, criador da “primeira igreja moderna de Portugal”,[8] valer-lhe-á o epíteto de “o mais arquitecto dos pintores portugueses” que consagrará Almada no panorama da decoração sacra portuguesa.

Em anos mais próximos da encomenda do Restelo, são duas as obras que, no nosso entender, fazem de ponte entre os vitrais públicos e o privado: a Igreja do Santo Condestável em Lisboa e a Capela de São Gabriel em Vendas Novas, ambas realizadas em 1951.

Iconograficamente Almada estuda as possibilidades de um espaço sagrado, preenchido pela presença extra-ordinária do arcanjo da Anunciação. No vitral da Casa, este espaço torna-se mítico, com a figura deitada de Psique resultante duma rotação de 90 graus do arcanjo das Capelas. O mitológico, tal como o sagrado torna-se assim símbolo da condição humana, que necessita duma descida do alto para baixo (Arcanjo) ou duma queda (Eros-Psique) para alcançar o conhecimento (gnose) por meio do Amor.


179 e 180. José de Almada Negreiros, Anunciação, 1951, Igreja do Santo Condestável, Lisboa, fotografia publicada em Almada Negreiros: um percurso possível, INCM, Lisboa, 1993, p. 49 e José de Almada José de Almada Negreiros, Anunciação, vitral da Capela de São Gabriel, em Vendas Novas, 1951.
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https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjeBfnOHFaYRc1lYjWGY4iF9j8bhAk1_sIV_htvxqVnt4lG4xw4Y5_y53CXutUQJJqFvQSPqf7htOH2yRWsyblObJ1SGD043-OrJ8xwm7itNIhtX5EIlN3totgjHRJ8oF3WdgoJFBDuDKc/s400/379_7908.jpg

Êxito duma amálgama entre as obras para as igrejas e para a biblioteca é o vitral fingido, misterioso e gigantesco, de cinco metros de altura, concebido em 1965 para a peça teatral Auto da Alma, realizado com colagens de papel de cera e fita isoladora, em simulação de vidro.


181. José de Almada Negreiros, Vitral, 1965 para a peça teatral Auto da Alma de Gil Vicente. Fotografia publicada em Vítor Pavão dos Santos, O escaparate de todas as artes ou Gil Vicente visto por Almada Negreiros, Instituto Português de Museus, 1993, p. 63.

Nesta peça de Gil Vicente, Almada assina a encenação, os figurinos e a cenografia para contar o enigma da Alma que, despojada de toda a sua Vanitas, se entrega à Igreja Triunfante. Aqui, na moldura sacra que envolve a peça, Almada comenta as aventuras de uma Alma que, como Psique, desejando o Conhecimento Supremo supera várias provas e tentações, apresentando-se às autoridades, no fim das suas peregrinações, como Nuda Veritas.

Em particular, é no primeiro diálogo entre a Alma e o seu Anjo da Guarda que se encontram as mais salientes correspondências entre a peça vicentina e a obra da Rua de Alcolena.[9] Porta-voz o Anjo, encontramos a mais perfeita descrição da Alma:

Alma humana, formada
De nenhũa cousa feita,
Mui preciosa,
De
corrupção separada,
E esmaltada
Naquella frágoa perfeita, gloriosa!
Substância imaterial, a Alma é platonicamente assimilada a uma árvore, a metade entre Terra e Céu.
Planta neste vale posta
Pera dar celestes flores
Olorosas,
E pera
serdes tresposta
Em a alta costa,
Onde se criam primores
Mais que
rosas!
Na metáfora vegetal, entre dois pólos opostos, em “alta costa”, situa-se a Alma que do Céu provem e ao Céu tem de voltar.
Planta sois e caminheira,
Que ainda que estais, vos is
Donde viestes.
Vossa pátria verdadeira
He ser herdei
Da glória que conseguis:
Andae prestes.
Por último surge o apelo para sair do sono e da imobilidade, dada a essência efémera e fátua do dia que, tal como a vida, está prestes a findar.

Alma bem-aventurada,
Dos anjos tanto querida,
Não durmais!
Hum ponto não esteis parada,
Que a jornada
Muito em breve é fenecida,
Se atentais.
A árvore humana, o sono despertado, este elanguescer do crepúsculo… tudo isto faz-nos lembrar os temas da Casa e do vitral. Psique é na Casa o que a Alma é no Auto.
Na sua resposta, a Alma vicentina remete para a Psique almadina:

Anjo que sois minha guarda,
Olhai por minha fraqueza
Terreal!
De
toda a parte haja resguarda,
Que não arda,
A minha preciosa riqueza
Principal.
Temendo a queda, a Alma recomenda-se ao Anjo, responsável pela sua vigilância, tal como Eros que socorre Psique nas suas provas expiatórias.

Mais um elemento liga Psique à Alma: é esta alusão ao ardor, à chama. Fraqueza e riqueza, terreal e principal estão contrapostos no discurso da Alma, que espera não extinguir, não consumir no fogo o seu Bem mais precioso. Do mesmo modo, no vitral, Psique torna-se uma chama ardente de desejo e o seu corpo acende-se como um archote por cima do apagado corpo terreal do amado.

Mais uma vez, é o teatro que Almada amava definir como “o escaparate de todas as artes”, a unir os caminhos sacros e profanos, públicos e privados da sua obra. Assim, a Casa, a Alma, Psique e o Teatro encontram-se ligados num nó indissolúvel.

Como diz o filósofo Paulo Sinde, a Alma tem a sua origem no outro mundo e vem a este para dar celestes flores, não rosas que têm espinhos, símbolo da peregrinação terrestre, mas primulas, ou primaveras, símbolo da peregrinação celeste.

Se a alma é uma planta, o caminho da regeneração, da demanda da vida nova, é o que deve percorrer o neófito, que etimologicamente significa “nova planta”. […] Todas as plantas têm duas raízes, que correspondem a dois tipos de alimento: uma raiz alimenta-se da humanidade da treva, do mineral e a outra da luz do céu; só por distracção chamamos ramos às raízes do alto. É do encontro das duas raízes que nascem a flor e o fruto. […] O homem é também essa dupla raiz mas, ao contrário da planta, tem a raiz visível na terra e a invisível no céu. E é também no encontro de uma com a outra que ele se realiza – nem só terra, nem só céu, porque o homem tem uma missão criadora a realizar aqui. Como diz Gil Vicente: Planta nesse valle posta/Pêra dar celestes flores/Olorosas. A sua missão é de aproximar a terra, subtilizando-a, do céu. [10]
Tal como a Casa, Psique sofre esta tensão entre alto e baixo e padece também uma inversão, na sua dupla viagem do céu para a terra e vice-versa. À sua queda segue a apoteose. Tal como na dupla escadaria de acesso à moradia e na escada para o terraço, a Alma pode descer e subir ao longo da árvore invertida que é a Casa da Rua de Alcolena,

do sensível ao inteligível
como lemos na epigrafe platónica da revista Eros de José Manuel.

No fim deste breve excursus através da arte da azulejaria e do vitral na extensa obra almadina, podemos concluir que a Moradia do Restelo, assinada em co-autoria com António Varela e António Paiva e comissionada pela família Fróis Ferrão é, sem dúvida, um exemplar único e irrepetível.

Nesta obra o pintor abandona o azulejo de padrão, utilizado noutros edifícios, públicos e privados, anteriores e posteriores à data dos painéis da Casa, e realiza um revestimento exterior figurado e geométrico, sem ser modular, um geométrico-lírico poderíamos defini-lo, tal como fez em algumas construções públicas lisboetas. Os azulejos alegóricos da moradia da Rua de Alcolena, pela qualidade que os caracteriza, pela técnica experimental e mista que os distingue, pela posição virada ao exterior, pelo destino privado e não público, ocupam um lugar muito especial não só na produção almadina, mas também no panorama da cerâmica artística portuguesa do século XX.

Para o espaço reservado à biblioteca do proprietário, Almada realiza um vitral excepcional, não só pelo destino privado e pelo sujeito mítico que o caracterizam, mas também pelo sentido profundo do seu significado, a meio caminho entre teatro e filosofia. No vitral de Alcolena, Almada concebe e realiza uma obra ao mesmo tempo filosófica - expressando conceitos platónicos como o tema do conhecimento, do andrógino, da metempsicose - e teatral, porque teatral é a eterna aventura da Alma à procura da Gnose, do Amor, da União com o outro, com todos os seres, com a humanidade.

De facto, a Casa da Rua de Alcolena é em si uma obra de arte extra-ordinária e única no seu género que merece ser preservada como património da Cidade, da Nação e da Humanidade.

[1] José-Augusto França, "Começar", in Colóquio, nº 60, Lisboa, Out. 1970; França, José-Augusto, Almada e o teatro, INATEL, 1980; França, José-Augusto, Almada, Artis, Lisboa, 1963; França, José-Augusto, Almada, Fundação Calouste Gulbenkian, ACARTE, Lisboa, 1985; França, José-Augusto, Almada: o português sem mestre, Lisboa, Estúdios Cor, 1974; França, José-Augusto, Os anos 40 na arte portuguesa, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1982; Vieira Joaquim, Almada Negreiros, Fotobiografias Século XX, Bertrand, Lisboa, 2006; Almada, a cena do corpo, op. cit., Almada Negreiros: um percurso possível, INCM, Lisboa, 1993.
[2] Suraya Burlamaqui, Cerâmica mural portuguesa contemporânea: azulejos, placas e relevos, Quetzal editores, Lisboa, 1996, p. 15.
[3] Ibidem, p. 16.
[4] Ibidem, p. 31.
[5] Ibidem, p. 36.
[6] Ibidem, p. 37.
[7] Ibidem, p. 38.
[8] Cfr. Porfírio Pardal Monteiro, in Memória descritiva, Processo CML, n.º 52.440, 1934.
[9] Gil Vicente, Auto da Alma, Tipografia da Enciclopédia Portuguesa, Porto, 1926, pp. 40-41.
[10] Pedro Sinde, Terra Lúcida. A intimidade do homem com a natureza, Pena Perfeita, 2005, pp. 28-29. Devo ao arquitecto Hugo Nazareth Fernandes a descoberta deste precioso livro.

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