domingo, 20 de dezembro de 2009

7. O Portal esotérico. A dupla queda de Psique, ou a descida da alma na consciência.



29. José de Almada Negreiros, painel do portal da entrada secundária da Casa. Fotografia©Paulo Cintra, Novembro 2008. http://www.cidadaosporlisboa.org/imgs/imagens/1235081126N1yIE8zf0Ej96QN9.JPG (_CCC4559.tif)

A entrada esotérica surge em cariz côncavo face à varanda, cuja convexidade está em contraponto com a plataforma análoga no piso inferior. O aspecto aberto e ondulado das duas varandas não só contribui para desmentir a austeridade do bloco ortogonal do edifício, mas também remete para a raiz mitológica da iconografia do vitral e dos azulejos que o decoram, assim como alude ao significado oculto e hermético da construção. A articulação saliência/reentrância, proeminência/concavidade remete, a meu ver, para a origem do mito de Eros, tal como é narrado por Sócrates, que refere o discurso de Diótima, no Banquete de Platão:
Quando nasceu Afrodite, os deuses banquetearam-se e, entre eles, estava Poros (o Expediente), filho de Métis. Depois de terem comido, chegou Pênia (a Pobreza) para mendigar, porque tinha sido um grande banquete, e ela estava perto da porta. Aconteceu que Poros, embriagado de néctar, dado que ainda não havia vinho, entrou nos jardins de Zeus e, pesado como estava, adormeceu. Pênia, então, pela carência em que se encontrava de tudo o que tem Poros, e cogitando ter um filho de Poros, dormiu com ele e concebeu Eros. Por isso, Eros tornou-se seguidor e ministro de Afrodite, porque foi gerado durante as suas festas natalícias; e também era por natureza amante da beleza, porque Afrodite também era bela. Pois que Eros é filho de Pênia e Poros, eis qual é a sua condição. É sempre pobre não é de maneira alguma delicado e belo como geralmente se crê; mas sujo, hirsuto, descalço, sem teto. Deita-se sempre por terra e não possui nada para cobrir-se, descansa dormindo ao ar livre sob as estrelas, nos caminhos e junto às portas. Enfim, mostra claramente a natureza da sua mãe, andando sempre acompanhado da pobreza. Ao invés, da parte do pai, Eros está sempre à espreita dos belos de corpo e de alma, com sagazes ardis. É corajoso, audaz e constante. Eros é um caçador temível, astucioso, sempre armando intrigas. Gosta de invenções e é cheio de expediente para consegui-las. É filósofo o tempo todo, encantador poderoso, fazedor de filtros, sofista. Sua natureza não é nem mortal nem imortal; no mesmo dia, em um momento, quando tudo lhe sucede bem, floresce bem vivo e, no momento seguinte, morre; mas depois retorna à vida, graças à natureza paterna. Mas tudo o que consegue pouco a pouco sempre lhe foge das mãos. Em suma, Eros nunca é totalmente pobre nem totalmente rico.[1]
No princípio, Sócrates, porta-voz de Diótima, narra que os homens eram inteiros e acrescenta que Eros é o que está entre dois extremos, entre sabedoria e ignorância, sendo, por condição e origem, filho de um pai sábio e rico e de uma mãe que não é sábia nem rica. Assim, o mito, legível na decoração interior e exterior da casa, está presente também na sua estrutura arquitectónica, feita de proeminências e concavidades, como é evidente nas plantas do rés-do-chão e do primeiro andar, onde o avançar de Poros é interpretado pelas varandas e o recuar de Pênia pela melodia curvilínea da escada, desenhada em semi-elipse.


30. António Varela, Obra 23293, Processo 35792/1951, Folha 52, Arquivo Municipal de Lisboa.

Do ponto de vista figurativo, o portal esotérico é um singular prelúdio à já referida obra Começar, 1968-1969.[2] Tal como na sua última obra, o autor desenha aqui as evoluções e revoluções dum pentagrama, perceptível na sua dupla versão invertida em alto à esquerda e à direita, enquanto atravessa momentos de invisibilidade e momentos de grande visibilidade (linhas negras e linhas douradas), alternando um percurso linear e anguloso, com uma passagem circular ou em espiral (linhas vermelhas e douradas). Os fundos negros alternam-se aos campos vermelhos. A presença simultânea das três cores remete para a alquimia dos materiais: ouro, chumbo e fogo. Mais ainda. Na peça teatral de Almada O mito de Psique, 1949, encontramos a citação da famosa caverna do outro mito de Platão.
A cena representa o interior duma caverna cuja entrada ao fundo é da medida duma pessoa[3]
O mito platónico da caverna, descrito no VII livro da República, é uma parábola de como o homem se consegue libertar da escuridão da ignorância, para alcançar a luz da verdade.

Conta o mito que um grupo de homens vivia no interior duma caverna, com uma entrada aberta à luz, acorrentados e de costas para que não se pudessem mexer nem pudessem ver senão diante deles. Nas paredes da caverna vêem-se uma série de sombras pertencentes aos homens que vivem no exterior do antro, onde há uma fogueira acesa. Os prisioneiros acreditam que as sombras projectadas pelos homens e pelos objectos são reais. Se fossem libertados das suas cadeias, obrigados a voltar-se, após sofrer um deslumbramento que os impediria de distinguir os objectos de que antes viam apenas as sombras, constrangidos a sair da caverna, seriam curados da sua ignorância, não sem antes ter de esperar o tempo necessário para a adaptação da vista.

Alegoria do processo do conhecimento, o mito da caverna permite explicar que o verdadeiro Conhecimento, a Epistéme, passa pela gradual ultrapassagem das coisas sensíveis, Doxa, chegando ao domínio das Ideias. Para o filósofo, a realidade está no mundo das Ideias, enquanto a maioria dos homens vive na condição da ignorância, ao nível da Doxa, no mundo ilusório das coisas sensíveis, mutáveis, corruptíveis, meras sombras da luz da Verdade, da Gnose, da qual se mantém afastada. As conclusões do mito, tiradas por Sócrates, estão surpreendentemente em sintonia com a figura e o significado do mito de Psique:
Sócrates - Quanto à subida à região superior e à contemplação dos seus objectos, se a considerares como a ascensão da alma para a mansão inteligível, não te enganarás quanto à minha ideia, visto que também tu desejas conhecê-la. Só Deus sabe se ela é verdadeira. Quanto a mim, a minha opinião é esta: no mundo inteligível, a ideia do Bem é a última a ser apreendida, e com dificuldade, mas não se pode apreendê-la sem concluir que ela é a causa de tudo o que de recto e Belo existe em todas as coisas; no mundo visível, ela engendrou a luz; no mundo inteligível, é ela que é soberana e dispensa a verdade e a inteligência; e é preciso vê-la para se comportar com sabedoria na vida particular e na vida pública.[4]
A “subida da Alma para a Mansão inteligível”, as provas para alcançar o “Belo” e o “Bem”, a “Luz” como alegoria da “Ideia”: tudo isso é a essência, a mensagem, o fil-rouge que liga escultura, arquitectura, pintura e poesia, na obra de arte total que é a Casa da Rua de Alcolena.

Em consonância com o mito platónico e coerentemente com o desenho escolhido para os azulejos do painel esotérico, Almada descreve o ingresso da cena, desenhada em forma de estrela. A personagem de Psique é teatralmente pintada como uma moderna mannequin à la mode, caracterizada pela curiosidade, qualidade que a distingue entre as outras e que lhe consente ultrapassar o antro escuro:
Depois passa para lá da abertura da caverna uma jovem, autêntico figurino de jornal de modas, de chapéu, luvas e sombrinha muito bem enrolada que lhe serve de bengala. Torna a aparecer e fica à entrada curiosa do interior da caverna.

A JOVEM - Olá!
Depois com a ponta da sombrinha vai cautelosamente experimentando a passagem até que entra perdendo-se na escuridão da caverna.[5]
Alma gémea da Psique teatral é a Psique representada nos azulejos da varanda exposta no lado Sudoeste da casa. Daqui em diante, a jovem sofrerá várias metamorfoses: de Psique em mulher de Cabaret, de mulher de Cabaret em Colombina, de Colombina em Mãe. Por sua vez, Eros torna-se Arlequim e, de Arlequim, Pai.

O diálogo entre as personagens da peça almadina é um críptico ritual de iniciação entre mestre e discípulo, nomeadamente Eros e Psique, acerca da gnose ou filosofia do Conhecimento.


ELE - A ideia é difícil porque é simples.
ELA - Qual ideia?
ELE - Toda a ideia. Toda a ideia é uma glosa da luz.
ELA - Qual luz?
ELE - A única. A luz é única, como cada glosa.
ELA - Qual glosa?
ELE - A glosa da luz.[6]
Em uníssono com a peça teatral, não só o azulejo da entrada esotérica da casa é “da medida de uma pessoa” e é desenhado em forma de estrela, representando a escuridão da caverna, mas também o seu fundo negro se torna o palco para a dança do Pentagrama que, como em Começar, nas suas revoluções e rotações actua, estiliza e personifica a Ideia. Precisamente por isso, Almada escolhe os riscos coloridos: para fixar numa iconografia abstracta a Ideia, sendo “Toda a ideia uma glosa da luz”. Em perfeita assonância com o pensamento platónico, segundo Almada, da luz da Íris nasceram as cores todas e a luz todas contém. A Ideia, contendo todo o saber, é alter-ego da Luz. Por isso, na sua dança, a estrela conhece as cores brilhantes dos trajectos curvilíneos e rectilíneos. É um precipitar-se de linhas e tintas que revelam e ocultam, ao mesmo tempo, no habitual jogo entre visível e invisível que caracteriza também o painel da Gulbenkian, a dança e a queda livre do Pentalfa invertido.[7]

Além disso, Almada dá-nos, noutros espaços da sua escrita, a chave da motivação da sua escolha cromática, tal como acontece em particular na célebre Cena do Ódio:[8]
“Sou vermelho-niagara dos sexos escancarados nos chicotes dos cossacos!”,
“Pajem loiro”,
“Amarelo-múmia”,
“Resto de cedros e Fumo de cinzas”,
“Vulcão pirotécnico com chuvas de ouro”.[9]
Como nos sulcos gravados na pedra do painel da Gulbenkian, estes traços coloridos, desenhados por Almada no azulejo da entrada dos aposentos privados do proprietário da casa, veiculam um significado particular: na obra pública representam as revoluções planetárias da estrela Vénus; na casa privada encarnam a luz da Gnose ou, melhor, a luz que ilumina o sujeito que atinge a Gnose, em outras palavras Psique. Da exegese dos textos almadinos, conclui-se que as linhas coloridas do portal esotérico não são mais que um retrato luminoso do “conhecível” (do que se pode conhecer) e do “conhecedor” (do sujeito que conhece). A decoração do portal revela-se assim uma abstracção lírico-geométrica de cariz gnoseológico, à procura dos fundamentos do saber.

O fundo preto do painel de azulejos remete para o mito da caverna platónica e, como tal, o conhecimento das coisas sensíveis, ou Doxa, é apenas uma sombra da ideia arquetípica. O iniciado deve passar pelas trevas da imanência, para atingir a luz da Ideia na sua transcendência. Mais ainda: a cor negra, na estética do proprietário da casa, ocupa um lugar especial:
É o escuro, é o negro,
é a côr que se não vê! …[10]

Anjo ou demónio, não sei quem és, não sei quem sou. Em ti, e em mim, o bem e o mal, a beleza e a fealdade, a verdade e o êrro não surgem como um conflito, - formam uma harmonia, uma unidade. Só há perversão no que é inautêntico. E tu és pura na tua miséria, na tua grandeza, - és o meu anjo negro, o meu demónio branco. E eu sou puro na minha miséria, na minha grandeza, - sou o teu anjo negro, o teu demónio branco.[11]
A procurada ambiguidade entre Luz e Trevas, Visível e Invisível, Bem e Mal, Anjo e Demónio, reflecte o universo filosófico de José Manuel, em busca dum equilíbrio entre os opostos. O eterno devir, o escorrer do tempo e a contínua transmutação dos seres estão relacionados com o conceito de Metamorfose.

Psique, cujo mito ocupa os capítulos centrais das Metamorfoses de Ovídio, é emblema da alma em perpétua mudança espiritual. Este conceito se reflecte na escrita de José Manuel:
Há uma transformação das imagens. Modificam-se permanentemente. É impossível fixá-las. Do mesmo modo, a realidade obedece a uma contínua transformação. E a própria consciência é um processo de sucessivas metamorfoses. Deste modo, há três movimentos no personagem, - o movimento de fora, o movimento de dentro e o movimento da consciência. De tudo isto resulta um ritmo. E esse ritmo é ainda o ritmo da vida...[12]
A iconografia do Pentalfa invertido assume, assim, o valor duma tomada de consciência e, ao mesmo tempo, duma “queda” em si mesma, por parte de Psique, iniciada à Gnose, enquanto no momento de fora para dentro, de alto para baixo é legível o recuar, a descida da Alma in interiore homini.

Emblemática, nesse texto de José Manuel, é a afirmação da prioridade da metamorfose como processo vital e cognitivo. Psique, na sua iniciação, é conduzida pela mão por Eros no seu percurso das trevas à luz. A Alma pode conhecer a Beleza, a Filosofia, a Ideia desde que seja levada pelo Amor. Eros tem a função de trâmite (Eros metaxú) na escalada dos fenomena até às eideias, sendo uma mistura genética entre aspiração e satisfação, desejo e saciedade, privação e plenitude, Pênia e Poros.

Não por acaso, todos os 15 números da revista Eros são epigrafados com este mote platónico:
Do sensível ao inteligível
O mito de Eros torna-se, para José Manuel e para os seus colaboradores, uma metáfora da gnose:
A cultura manifesta-se pois pelo amor do desconhecido, pelo Eros platónico, por uma inquietude e desejo permanentes.[13]
Emblema do Conhecimento e do Auto-Conhecimento é o Pentalfa invertido: “Noli foras ire, in te ipsum redi; in interiore homini habitat Veritas”.[14]

Por José Manuel:
TEMA COM VARIAÇÕES:
1

Conhece-te a ti mesmo. O que és
é toda a tua realidade.

2

Sê uno enquanto existes. Tu és a ideia e a forma dos mundos temporais, multímodos que sentes.

3

A única certeza, a única verdade,
é a essência interior da tua própria alma.[15]

E por Almada:
Todas as coisas do universo aonde, por tanto tempo, me procurei, são as mesmas que encontrei dentro do peito no fim da viagem que fiz pelo Universo.[16]
[1] http://pt.wikipedia.org/wiki/Eros
[2] Para uma análise do painel veja-se: José-Augusto França, Almada: o português sem mestre, Lisboa, Estúdios Cor, 1974; José-Augusto França, "Começar", in Colóquio, Lisboa, nº 60 (Out. 1970), pp. 20-26; José Lima de Freitas, Almada e o número, Lisboa, Arcádia, 1977; Lima de Freitas, José, Almada e o número, Lisboa, Arcádia, 2ª ed. rev., corrigida e aumentada, Lisboa, Soctip, 1990; José de Almada Negreiros, Ver, notas e prefácio de Lima de Freitas, Lisboa, Arcádia, 1982; José Lima de Freitas, Pintar o sete: ensaios sobre Almada Negreiros, o pitagorismo e a geometria sagrada, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, D.L., 1990. João Furtado Coelho, Os princípios de começar, em Colóquio. Artes, n. 100, Lisboa, Março 1994, pp. 8-23, 75. Barbara Aniello, op. cit.
[3] José de Almada Negreiros, O mito de Psique, em Teatro, Lisboa, Estampa, 1971, p. 171.
[4] Platão, A República, trad. e notas de Maria Helena da Rocha Pereira, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1993, livro VII, pp. 317 e segg.
[5] José de Almada Negreiros, O mito de Psique, op. cit., pp. 172-173.
[6] Ibidem, p. 174.
[7] Barbara Aniello, op. cit., p. 344.
[8] José de Almada Negreiros, Obras Completas, Poesia, vol. I, Obras Completas, Imprensa Nacional Casa da Moeda, Lisboa 1986-1993, pp. 47-66.
[9] Idênticas policromias encontram-se no painel Começar. Almada quis colorir os riscos gravados na pedra, segundo uma decisão final dele (França, José-Augusto, Almada: o português sem mestre, Lisboa, Estúdios Cor, 1974, p. 177). Além de fornecer uma razão didáctica, como orientação na floresta dos riscos geométricos, estas faixas de cores constituem uma linguagem cifrada, uma mensagem críptica, esculpida na pedra, semanticamente densa de alusões. De uma leitura teosófica da obra almadina, com base na carta teosófica das cores, editada por Besant e Leadbeater num texto de 1901, infere-se que o percurso da estrela se inicia em Começar, pela descida no orgulho e na cólera e, depois de ter superado a obscuridade da malícia, conhece o brilho dourado do intelecto audaz. Cfr. Barbara Aniello, op. cit., p. 350 e segg.
[10] José Manuel, Alquimia do sonho, op. cit., pp.105-106.
[11] Ibidem, p. 61.
[12] Ibidem, p. 33.
[13] Jorge Nemésio, Cultura comunicação e transposição, in Eros I (Abril 1951), op. cit.
[14] Agostinho, De vera religione XXXIX, 72, in Augustinianum XXXVIII, I, 1998 [itálico nosso].
[15] José Manuel, Tema e variações, Tipografia Ideal, 1950, p. 13.
[16] José de Almada Negreiros, Confidências, em A invenção do dia claro, II parte, em Obras Completas, Poesia, p. 171.

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