domingo, 20 de dezembro de 2009

13. Mistério e maestria duma assinatura:

A relevância da proximidade entre os textos teatrais e as escolhas iconográficas é de tal importância e consistência que Almada não prescinde mesmo dos mínimos pormenores para aproveitar o diálogo inter-artes e intra-artes. De facto ele parece tecer um colóquio não só com as outras artes, mas também consigo mesmo. Este é o caso da sua assinatura na parede solar das histórias de Arlequim e Columbina.

Em forma de chapéu de Arlequim, Almada desenha ao lado da sua rubrica, um arco.


117. José de Almada Negreiros, pormenor da varanda do 1º piso da Casa da Rua de Alcolena. Fotografia©Paulo Cintra, Novembro 2008.
http://www.cidadaosporlisboa.org/imgs/imagens/1235081128W7uXO5am1Ri35HP1.JPG (_CCC4606.tif)

Mais uma vez temos que recorrer à sua peça teatral para explicar o sentido desta opção:
ELA - Se te entendo, pra ti o mundo é contra nós?
ELE - Não: é forçoso. É caminho. E o nosso é a Vida, somos nós.
ELA - Dizes que a Vida é fora do mundo?
ELE - Não: por cima. Exactamente por cima do mundo. (Põe uma mão por cima da
outra.
) E se for necessário, devemos mentir ao mundo (Aponta a mão de baixo)
para não nos mentirmos a nós mesmos. (Aponta a mão de cima.). O arco é forçoso, o que vive é a flecha.
ELE - Se o mundo for por cima, pesa na Vida.[1]
O próprio detalhe da assinatura na obra de arte total que Almada constrói, em absoluta coerência com o resto da decoração da casa, apresenta uma dupla leitura, exotérica e esotérica. Por um lado, Almada alude ao elemento reconhecível do chapéu de Arlequim, por outro à arma de Eros: o arco.

De resto, Eros é nome de Arlequim, tal como Arlequim é nome de Almada, por isso os três vultos se encontram reunidos no emblema da assinatura.

O arco une alto e baixo, tal como o duplo pentagrama, invertido ou não. Mais uma vez é coincidencia opositorum. Um paralelo figurativo desta emblemática e geométrica assinatura está na Capela de São Gabriel em Vendas Novas, datada de 1951, o mesmo ano do primeiro projecto da moradia de António Varela.


118. José de Almada Negreiros, Anunciação, vitral da Capela de São Gabriel, em Vendas Novas, 1951.
https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjeBfnOHFaYRc1lYjWGY4iF9j8bhAk1_sIV_htvxqVnt4lG4xw4Y5_y53CXutUQJJqFvQSPqf7htOH2yRWsyblObJ1SGD043-OrJ8xwm7itNIhtX5EIlN3totgjHRJ8oF3WdgoJFBDuDKc/s400/379_7908.jpg

No espólio do arquitecto encontra-se um significativo postal, reprodução do desenho-estudo para o vitral, contendo no verso a dedicatória do autor, Almada, para o arquitecto, António Varela.


119. e 120. José de Almada Negreiros, recto e verso do postal, desenho-estudo para o vitral da Capela de São Gabriel, em Vendas Novas, 1951. Fotografia©Paulo Cintra, Novembro 2008, Espólio Varela.

Coincidência, essa, que não pode ser casual, dados os interesses comuns e a comum inspiração filosófica. Emoldurados por uma vesica piscis estão Maria e Gabriel. No momento da revelação e saudação angélica, um raio de luz ilumina um óculo no chão, contendo água, símbolo do tabernáculo que é Maria, primeira Igreja uterina. O anjo, retratado no vitral da Capela de São Gabriel na sua função de revelador dos planos divinos, de mediador do Saber, de ponte entre Céu e Terra, é alter-ego de Eros-Psique. De facto, se rodássemos 90 graus a imagem, evidenciar-se-ia uma extraordinária afinidade entre o anjo e a figura supina, no vitral que ornava a Biblioteca do proprietário da moradia. Se os corpos dos amantes descrevem uma vesica piscis deitada, um óculo deriva da circularidade dos gestos.


121. José de Almada Negreiros, pormenor de Eros e Psique, vitral, 400 x 50, Museu da Assembleia da República, Residência Oficial do Presidente, fotografia de Barbara Aniello. Publicado em Barbara Aniello, “As metamorfoses de Psique na Cada da rua de Alcolena: em busca da obra de arte total”, em Monumentos, revista semestral de edifícios e monumentos, nº 30, Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, Lisboa, Dezembro de 2009, pp. 106-113.

A insistência sobre o motivo da vesica piscis é atestada pelo estudo para um outro vitral da Capela de Vendas Novas, onde não uma, mas duas vesicas perpendiculares circunscrevem o mapa de Portugal.


122. José de Almada Negreiros, estudo para vitral da Capela de São Gabriel, em Vendas Novas, 1951, óleo, publicado em Vieira Joaquim, Fotobiografias do Século XX-Almada Negreiros, Bertrand, Lisboa, 2006, p. 154. Fotocompográfica Lda.

O símbolo da vesica piscis, já conhecido na Índia, na Mesopotâmia Antiga e em África, foi adoptado pelo Cristianismo, aludindo ao fruto da amêndoa, Cristo, semente de vida e, ao mesmo tempo, à intersecção entre dois círculos, dois mundos comunicantes, o material e o espiritual. Este vitral é um anel de conjunção entre a Anunciação e Eros e Psique, tomando Portugal o lugar privilegiado do fruto da divina união, quer cristã, quer pagã. Por isso Eros e Psique ocupam a paralela ao ponto cardeal, no sentido do qual a Nação está geograficamente orientada: Sudoeste.

Para além disso, o projecto da Capela é não só contemporâneo do projecto da casa, mas também tem a assinatura do arquitecto Jorge Segurado, com o qual António Varela partilhava o atelier e que foi seu parceiro na construção da Casa da Moeda.

Na minha opinião, à leitura esotérica da assinatura pertence a estilização do conceito de mediação, de arco, de ponte entre dois mundos, humano e divino, tal como lembram ambos os vitrais, na fabula de Eros e Psique e na historia do Anúncio de São Gabriel.

A beleza e o mistério desta casa, que pisa o limiar entre o exotérico e o esotérico, estão no seu enigma. Responsáveis por manter o arcano são os próprios autores, na procurada resistência à explicação, à justificação das suas escolhas poético-figurativas:
Recuso qualquer condescendência, qualquer tolerância com o público. Por exemplo, a descrição lema, minuciosa de todas as tentativas frustradas, de todas as esperanças inúteis. Recuso porque a minha linguagem é o símbolo. E todo o símbolo é necessàriamente breve, sintético, vertiginoso, sibilino. Aliás, simbólica ou narrativa, a verdade é sempre fictícia, misteriosa. Sobretudo aqui.[2]
Eu próprio não compreendo, nem explico. O meu clima é o sonho. Abandono-me ao
sonho. É o meu maior crime, é o meu maior castigo, é o meu maior perdão.[3]

Tudo o que acontece não é senão símbolo.[4]

Pelo amor de Deus não me obriguem a explicar nada do que eu diga.[5]

Toda a arte é confissão, confidência, revelação íntima. Eu não escrevo, - escrevo-me. Linguagem e mensagem identificam-se comigo. Para quê qualquer tentativa de auto -retrato? Francamente, não sei. No entanto, é preciso.[6]

Quero mostrar-me, revelar-me, confessar-me, e sinto que é impossível... Estas palavras que escrevo são apenas arabescos, pormenores decorativos, sugestões de alma. No fundo, eu próprio me desconheço.[7]
Não obstante isso, José Manuel, superando todas as suas reticências, dedica um auto-retrato poético da sua alma a José de Almada Negreiros:
CONFISSÃO

Ao PINTOR ALMADA NEGREIROS

Sim, eu não sei como exprimir
aquilo que sinto cá dentro da alma;
ora é um Mar feroz sempre a rugir,
ora um Mar brando e manso, sempre em calma!

Por vezes sinto, horror de sentir!,
um mal-estar dentro de mim,
uma angústia cruel e sem fim
que me faz de ódio e raiva rugir
tal fera exausta de sofrer
ansiando momentos de prazer!

Outras vezes em serena calma
pareço ter qualquer coisa de divino
que me faz mesquinho e pequenino
como um melodioso sino que canta a chorar!

Eis o retrato puro desta alma
que só se sabe apenas lamentar![8]
Por sua vez o pintor ilustrará muitas das suas colectâneas, sigilando-as com o rosto estilizado de Orfeu.


123. 124. e 125. José Manuel, capas para As primeiras canções, 1944, Novas Canções, 1946, Sargaços, 1947, Biblioteca Nacional de Lisboa, 1952, desenhos de José de Almada Negreiros. Reprodução de Barbara Aniello.

Fiel ao seu credo, Almada escolhe a lírica figura mitológica onde se fundem poesia e música, vida e morte, apolíneo e dionisíaco. Mais uma vez Orfeu representa aquela união dos opostos que, enquanto artista, Almada desde sempre procurava e da qual a Casa é claro indício.

[1] José de Almada Negreiros, O mito de Psique, op. cit., p. 179 [bold nosso].
[2] José Manuel, Alquimia do sonho, op. cit., p. 37.
[3] Ibidem, p. 38.
[4] José de Almada Negreiros, citando Goethe em Ver, op. cit., p. 247.
[5] José de Almada Negreiros, A Minha Dedicatória a Vera Sergine, 1923, De Teatro, citado in Furtado Coelho, João, Almada Dixit, Livros Horizonte, Lisboa, 2009, p. 97.
[6] José Manuel, Alquimia do sonho, op. cit., p. 49.
[7] Ibidem, p. 50.
[8] José Manuel, Primeiras canções, op. cit., pp. 126-127.

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