domingo, 20 de dezembro de 2009

9.5 Uma localização particular. As cores do vitral.

Segundo esta leitura, seria emblemática a posição do painel, situado na parede Norte-Poente da casa. O vitral indicaria a morte “aparente” do sol, que cada dia se apaga para depois renascer a nova vida. Significativamente, do lado oposto da construção, a Sul-Nascente encontrava-se uma capela, junto aos aposentos de Maria da Piedade, que completava o ciclo solar da vida, morte e ressurreição.

O ponto cardeal Oeste é crucial na estética de José Manuel, como revela o poema das Primeiras Canções, intitulado Poente:
Esta minh'alma que vagueia triste
por um campo de rosas com muitos espinhos,
vai pensando em ti, ilusão que te partiste,
e nunca mais voltaste.
A noite é escura, a alma é branca,
que harmonioso contraste!
E a alma na noite escura
parecia muito mais pura
do que o era na verdade.

Mas o tempo passou;
e como o escuro era muito
e o branco quási nada,
o branco ficou escuro
e a minh'alma ficou em nada...

E a minh'alma que agora se não vê,
mas que ainda existe,
chora lamentosamente por ti,
ó malvada ilusão que te partiste!...[1]
Este poema, dedicado a Almada Negreiros, autor do vitral, precede em sete anos o primeiro projecto da casa e, significativamente, alude ao ponto cardeal que albergará a obra. Particularmente indicativo é este contraste entre sombra e luz, resolvido no encontro e na fusão do escuro e do branco que trocam de lugar um com o outro. Depois do abandono, a alma vai em busca do amor, mas em vão. A sombra cai e o “eu” cega. Indicativa duma sensibilidade à luz e à procura da fusão, expressas no vitral, esta poesia alude veladamente ao Mito de Psique.

Uma função especial desempenharia a lucerna no vitral, significativamente ressaltada pela cor verde:
«Especialmente instrutiva é a rela­ção da lâmpada com Psique. No mito, atribui-se à lâmpada uma função que nos esclarece acerca do respectivo lugar nos «Mistérios»...[2]
A lamparina, portanto, sublinhando a passagem da vida material à vida anímica e assinalando um momento de ascese, e não um momento de queda, na existência de Psique, seria simultaneamente acessório funcional da teatralização do mito e presença simbólica da luz que permite o acesso aos Mistérios. É a chama da lucerna, instrumento que permite a visão, que tinge de luz o corpo ardente de Psique, sujeito vidente. Narrando o mito, Eudoro de Sousa conta que, em consequência da visão, “Psique estremeceu e o seu corpo ardeu, como a luz da lucerna, rasgando o véu da noite”. O brilho do corpo nu de Psique fere a manta obscura da noite e “assim a ignorante Psique se inflama de amor por Amor”.[3]

Mais ainda. A lucerna que a figura dourada do vitral segura na mão poderá ambiguamente referir-se à lamparina do primeiro momento crítico do drama e ao frasco de Prosérpina do segundo. Luz ou perfume, visão ou olfacto, este objecto concorre para o significado simbólico da inteireza e pureza do amor.
Conserva-o em ti mesmo, intacto e puro,
como um perfume de mulher amada.[4]
Almada alude à lanterna como elemento intermediário entre a iluminação e a cegueira:
Sou Narciso do Meu Ódio! O Meu ódio é Lanterna de Diógenes, é cegueira de Diógenes, é cegueira da Lanterna![5]
A cor verde, para Almada, representa a ponte entre dois mundos.

É numa tinta verde que autografa a capa da Invenção do Dia claro, “escripta de uma só maneira para todas as espécies de orgulho e seguida das démarches para a invenção: ensaios para a iniciação de Portuguezes na revelação da pintura”[6]


55. José de Almada Negreiros, Invenção do Dia claro, ms., Biblioteca Nacional de Portugal, Espólio Almada Negreiros, N. 15/1. Depósito da Biblioteca Nacional de Portugal, 2007.
http://images.google.pt/imgres?imgurl=http://purl.pt/13858/1/imagens/a1c/107_n15-1_0001.jpg&imgrefurl=http://purl.pt/13858/1/geneses/1/3-107.html&usg=__OV1_m_IBYWYxgAT7Aqc3DqZQG3A=&h=539&w=379&sz=43&hl=pt-PT&start=1&sig2=qQY0A3W4Pg3HdDv0ikTIXA&um=1&tbnid=feWR3N_t5-zVOM:&tbnh=132&tbnw=93&prev=/images%3Fq%3Dalmada%2Bnegreiros%2Binven%25C3%25A7%25C3%25A3o%2Bdo%2Bdia%2Bclaro%26hl%3Dpt-PT%26lr%3D%26rlz%3D1G1TSED_ITIT318%26um%3D1&ei=W0snS52IIdWA4QbZ-oyaDQ

É a cor verde que escolhe como capa do primeiro número da sua revista Sudoeste,[7]


56. José de Almada Negreiros, SW: Sudoeste, cadernos de Almada Negreiros, admin. Dário Martins, Edição facsimilada, Contexto, Lisboa, 1982, capa do nº1. http://publicacoesmaitreya.pt/files/t378

É sempre Verde a sua Hist[ória] (autêntica) para a côr branca e a côr roxa, datada de 5 de Maio de 1921[8] e “verde” é a cor que Almada representa num bailado citado no último dos manuscritos da pequena colecção e datado de 21 de Junho de 1918,[9]


57. José de Almada Negreiros, N.C. 5 – Invention Vert, 1918, ms., Espólio Almada Negreiros, N 15/5, Biblioteca Nacional de Portugal, Sala Reservados. Depósito da Biblioteca Nacional de Portugal, 2007.
http://acpc.bn.pt/imagens/colecoes/n15_negreiros_almada_th.jpg

um misto de escrita e de dança de cores, onde o olho egípcio seria uma espécie de assinatura do artista. Entre as cores-personagens deste Club futurista, o Verde é interpretado por Almada.

De uma cor verde amarelada, quase dourada, é a pele do Prometeu retratado no Número, entre o Homem grego, vermelho vivo e o Renascentista, roxo. As cores do conhecimento (vermelho, fogo vivo) e do fogo alquímico (violeta) derivam do verde-ouro do místico corpo do Prometeu, simbolicamente representado em cruz.

Da análise da obra poliédrica mas unitária de Almada, deduz-se que a cor verde faz de trâmite entre as esferas do Divino e Humano, do Conhecível e Inconhecível, do Visível e Invisível. Por isso, o verde tinge o instrumento de iluminação, a candeia, ocupando assim o fulcro físico do vitral e também o centro hermenêutico do mito nele representado.

Voltando ao contexto onde estava colocado o vitral, é importante fazer algumas considerações. É graças ao filósofo Eudoro de Sousa e à sua exegese do mito, que nos apercebemos do significado do duplo Pentalfa directo, com a ponta virada para cima, pintado na antecâmara da Biblioteca. À dupla queda de Psique, visualizada no Portal esotérico, corresponderá a dupla ascensão de Vénus, na antecâmara da Biblioteca. Aos dois Pentalfa invertidos fazem de contraponto dois Pentalfa regulares:
Em Psique, ascende a própria Afro­dite ao grau lunar, o mais alto que a materialidade da mulher pode atingir.[10]
Se a mulher, segundo o mito platónico é filha da terra, é mesmo da terra, que esta Psique-Vénus atinge o grau lunar, próprio do andrógino, filho da lua.

O símbolo geométrico do Pentalfa é sempre associado a Afrodite. Da grafia do percurso do planeta Vénus, através do Zodíaco, resulta um traçado geométrico absolutamente regular: o Pentágono perfeito. Ao longo deste caminho, o planeta alterna fases de invisibilidade e fases de extrema visibilidade, mas quando se encontra próximo do Sol manifesta então a sua dupla natureza: é a Estrela da Manhã, dita também Phosphoros, ou Lúcifer, mas também Estrela da Noite, Hespheros, Afrodite. Na mitologia, Vénus, invejosa da luminosidade de Psique, ascende qual astro regenerado, depois de a sua escrava ter ultrapassado todas as provas de expiação, inclusivamente a cegueira e a morte. Pentalfa invertido, Pentalfa regular.
A temporária exclusão do órgão da vista é condição necessária para o Neófito alcançar a visão interior:O sol queimou a paisagem todos os homens cegaram[11]
Retomando o tema da iluminação, é importante sublinhar o significado da luz mística do pôr-do-sol filtrada pela cor roxa do vitral-janela e é fundamental debruçarmo-nos sobre a luz da chama amarela emanada pela lamparina e nas suas reverberações nos corpos dos amantes.

Na sua peculiaridade, a luz, depois do último raio de sol, está no limiar entre o fim do dia e o seu início,
onde começa o sonho e acaba a vida,
um mundo sem distâncias e sem horas
te espera, como um términus de linha. [11A]
o pôr-do-sol confunde-se com a madrugada, pintando quase uma alba crepuscular:
Tenho ainda entre as mãos a madrugada
e já pressinto obscuramente ao longe
a estrela vespertina[12]
Na poesia, tal como na Biblioteca privada do proprietário, as cores tingem-se de nuances inefáveis, provocando uma ilusão atemporal, uma mistificação do tempo:
Porquê a lívida palidez do teu rosto? Seria o abat-jour, o luar à noite, ou o sol invisível da manhã?
Verdadeira ekphrasis, aflorando o plágio do vitral pela poesia, é este nocturno, pintado pelo poeta José Manuel:
HORA VIOLETA

Aproxima-se a hora violeta
do nosso amor, ungido de ternura,
e pelo mesmo cálix de amargura
beberemos a vida mais secreta.
Ela vem, soleníssima e gentil
e quebra-se em violáceos tons de luz,
a nossa colorida e amarga cruz,
indefinidamente juvenil.

A hora dos vitrais esmaecidos,
a hora dos segredos por dizer,
o momento lilaz, a fenecer,
no sonho dos segundos esquecidos,

a hora dos silêncios e da paz,
religiosa e ténue como um véu,
diluindo-se em sombras pelo céu,
pelo céu quase azul, quase lilaz,

a hora da harmonia e da beleza,
desfeita num acorde confrangido,
num som suavemente dolorido,
num eco embriagado de incerteza...

Desfazendo-se em sonhos pelos céus,
quase sentimental, quase secreta,
aproxima-se a hora violeta,
a hora em que te vou dizer adeus…[13]
Aqui tudo fala na obra almadina: a indefinida amante que se “quebra em violáceos tons de luz”, como no vidro despedaçado do vitral, a alusão aos “vitrais esmaecidos”, ao místico “momento lilaz”, ao “sonho”, ao “esquecimento”, à coincidencia opositorum da “harmonia desfeita”, à “ebriedade”, ao “segredo”, à separação, à união. Inspirado pelo lugar onde compunha, o poeta traduz em poesia a imagem do recíproco despertar da Alma e do Amor, numa atmosfera suspensa, irreal.
Uma pista interpretativa do significado que para José Manuel tinham as cores está explícita em Viração:

Eis o branco vítreo, baço e transparente,
a côr real dos impérios da luz,
a côr que ilumina tôda a gente
no seu esplendor crescente,
sempre e sempre, eternamente!

Eis o roxo do horizonte,
o roxo da sepultura;
eis a côr verde do monte,
a castanha que é de tôdas a mais dura,
a amarela das praias portuguesas,
do cobre, do oiro, das riquezas,
a vermelha do sangue e da dor,
a rosada cheia d'esplendor,
e tantas, tantas outras mais!
Mas de tôdas a mais formosa
e de tôdas a mais misteriosa
é a minha verdadeira cor
que eu canto sem saber porquê! ...

É o escuro, é o negro,
é a côr que se não vê! …[14]
Mais uma metamorfose do Visível ao Invisível está nas cores da Íris, que acabam na fatal escuridão do oculto. Não só José Manuel nos deixa rastos das suas preferências cromáticas, mas também nos avisa dos sentidos ocultos nas tintas: roxo-sepultura, verde-elevação, oiro-riqueza, rosa-esplendor, emolduradas mais uma vez pelos contrários: o baço vítreo branco transparente e o denso, invisível negro escuro. Na procurada harmonia dos opostos o que é naturalmente visível torna-se invisível e assiste-se a uma inesperada troca entre as qualidades e a identidade do branco e do negro.

[1] José Manuel, As Primeiras Canções, Portugália Editora, Lisboa, 1944, pp. 125-126.
[2] Eudoro de Sousa, op. cit., p. 14.
[3] Cfr. infra, p. 13.
[4] José Manuel, Primeiro livro de odes, op. cit., p. 14.
[5] José de Almada Negreiros, Cena do Ódio, op. cit., p. 48.
[6] José de Almada Negreiros, Invenção do Dia claro, ms., Biblioteca Nacional de Portugal, Espólio Almada Negreiros, N. 15/1.
[7] José de Almada Negreiros, SW: Sudoeste, op. cit., capa.
[8] José de Almada Negreiros, Hist[ória] (autentica) para a côr branca e a côr roxa, ms., Espólio Almada Negreiros, N 15/4, Biblioteca Nacional de Portugal, Sala Reservados.
[9] José de Almada Negreiros, N.C. 5 – Invention Vert, 1918, ms., Espólio Almada Negreiros, N 15/5, Biblioteca Nacional de Portugal, Sala Reservados.
[10] Eudoro de Sousa, op. cit., p. 12.
[11] José Manuel, Transfigurações, dedicado a Eduardo Viana, in Eros V-VI (Outubro 1953), op. cit., V-VI, 2.
[11A] José Manuel, Primeiro livro de odes, Lisboa, tip. Ideal, p. 37.
[12] José Manuel, Princesinha descalça, Lisboa, tip. Ideal, 1962, X.
[13] José Manuel, Sargaços, op. cit., pp. 44-45.
[14] José Manuel, Alquimia do sonho, op. cit., pp. 106-105.

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