domingo, 20 de dezembro de 2009

11. Eros e Psique sob as máscaras.

Em contraponto com os progenitores do andar de cima, temos um par em baixo, Columbina e Arlequim, em idêntico estilo monocromático. A obsessão pelo tema da Commedia dell’Arte persegue Almada desde a década dos anos ‘10. Representadas na sua obra plástica e na sua escrita teatral, as personagens mascaradas povoam o imaginário almadino, conforme o alto sentido do espectáculo que o artista tinha.

É uma feliz coincidência encontrar nas páginas de Eros um poema intitulado Boémia no céu e dedicado a José de Almada Negreiros que citamos aqui na íntegra:[1]
BOEMIA NO CEU
A José de Almada Negreiros.
I
Arlequim no Céu


Arlequim subiu às estrelas
brincou de deus suspenso num trapézio
dançou no espaço entre as nuvens e os anjos
Arlequim descobriu o céu
O céu começava para além de todas as cousas
A verdade era muito simples
Arlequim começou por sorrir
e sorrindo aprendeu o segredo
No céu todos os anjos sentiram a presença de Arlequim.
No céu era tudo monótono
não havia presente nem passado nem futuro
Quando Arlequim entrou no céu
os anjos sabiam que Deus o esperava
Sorriram inocentemente
Pela primeira vez o céu começava a ser real

II
o primeiro diálogo

Donde vens? perguntaram-lhe os anjos
Não sei venho de longe de muito longe
Porque vieste? perguntaram-lhe os anjos
Não sei minha alma aconteceu aqui
Foi um milagre? perguntaram-lhe os anjos
Não sei eu não o quis nem o pedi
Sabes que reino é este? perguntaram-lhe os anjos
Não sei não sei não sei respondeu Arlequim
Então quem és que não conheces nada?
Sou o eleito de Deus o primeiro entre os anjos
e o último entre os homens

III
Os ecos

Arlequim
falara verdade todos sabiam todos sabiam
Mas os anjos atónitos não compreendiam
E disse um talvez Deus se enganasse
E disse outro mas Deus não se engana

IV
o pecado original

E Deus falou assim aos anjos
Ao princípio era o homem e o homem era simples
não conhecia nada e conhecia tudo
os astros eram astros as nuvens
eram nuvens e as flores eram flores
Um dia o homem deteve-se um momento
contemplou profundamente a natureza
interrogou-a e não lhe encontrou sentido
Desesperou-se mas em vão
o abismo estava em toda a parte dentro dele
E desde então o homem sofreu

V
o
primeiro milagre


Um dia imprevistamente Arlequim aconteceu no mundo
nasceu vagamente viveu vagamente morreu vagamente
ninguém o conheceu quase não teve história
para os homens ele foi apenas um homem banal

VI
Biografia de Arlequim

Ninguém sabe onde nasceu Arlequim
ninguém sabe e ninguém se importa
talvez na Índia talvez no píncaro do Himalaia
Ninguém sabe quando nasceu Arlequim
ninguém sabe e ninguém se importa
talvez no ano dois mil e trinta e um
Arlequim começou por ser uma criança
precisamente igual a todas as outras crianças
Arlequim foi uma criança feliz
Simplesmente não envelheceu nunca
Arlequim foi sempre uma criança feliz
Nunca desejou nada nunca interrogou sobre nada
Para quê afinal? vi via e di vertia-se vi vendo
e a sua vida era tam simples tam simples
como a própria natureza

VII
Funeral de
Arlequim


Morreu impressentido e sozinho
e o seu cadáver foi lançado ao mar

VIII
Apologia do Arlequim


Depois os homens lembraram-se
Não odiava ninguém e perdoava tudo
aceitava o que a vida lhe dava e sorria
fora simples humilde inocente
E os homens louvaram-no e chamaram-lhe irmão

IX
Sermão aos homens do futuro


E os pais ensinaram aos filhos a história de Arlequim
e concluíram meus filhos Arlequim foi apenas um homem

X
o segundo diálogo

No céu os anjos interrogavam
Arlequim qual é o teu segredo?
E Arlequim respondia
Não tenho segredo nenhum
E os anjos insistiam
Arlequim que fizeste de grande na vida?
E Arlequim respondia
Vivi
E os anjos tornavam
Arlequim que mensagem nos trazes?
E Arlequim respondia
Não sei não sei não sei sei apenas que sou

XI
Sermão aos anjos

E Deus ensinou aos anjos
o segredo a grandeza e a mensagem de Arlequim
Depois concluiu simplesmente
Meus filhos Arlequim viveu a inocência da vida

XII
O segundo milagre

Os anjos compreenderam
e não perguntaram mais nada
Seguiram Arlequim por todos os caminhos
e foram jovens outra vez

XIII
Festival de Arlequim

Arlequim reformou o céu

O céu era monótono o céu era triste
Arlequim dançou e brincou
riu muito muito muito
E os anjos dançaram e brincaram com ele
e riram muito muito muito.

XIV
As profecias

Um dia os homens talvez aprendam a lição de Arlequim Serão simples serão puros serão jovens
Não haverá leis nem mistérios no mundo
Um dia os homens talvez sejam humanos e felizes
Arlequim é alter-ego de Almada,[2] como prova a obra gráfica do artista,


79. José de Almada Negreiros, Cabeça de Arlequim, lápis, 34 x 22, ass. n. dat., desenho publicado com o nº 105 [s.l.], em Almada, catálogo da exposição curada por Margarida Acciaiuoli, Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian (de 27 de Junho a 14 de Outubro de 1984), Lisboa, 1984, [s.l.]. Fotografia de Mário de Oliveira e Gustavo Leitão.

como afirma José Manuel neste poema que é a apoteose da ingenuidade e genuinidade e como confessa o autor na introdução da sua peça teatral Pierrot e Arlequim. Um eco desta identificação Almada-Arlequim encontra-se nas recordações da pintora Sarah Affonso, sua esposa, nas suas conversas coleccionadas pela nora. Esclarece Sarah que o significado dos dois, Pierrot e Arlequim, é a oposição:

- Os dois são pobres, não têm nada. Mas um é feliz e cheio de conquistas. O
outro é triste, e falhado. O feliz é o Arlequim, a Colombina é a namorada dele.
O Pierrot não tem ninguém e fica a olhar cheio de tristeza. O Arlequim é o sol,
o completo. O Pierrot é a lua, o inacabado.
- Qual é a diferença das vestimentas deles?
- É o contrário. O Arlequim usa uma malha pegada ao corpo feita com todas as cores do arco-iris. O Pierrot tem um fato todo de franzidos compridos com as mangas compridas, com ar de desmazelo, com uma cara branca cor-de-lua. - E os lozangos? - Os lozangos é a pobreza, feito de bocados.[3]
Embora, alerta José Manuel,

Sem dúvida há uma infinita distância, quase um abismo, entre o personagem que
vive em sociedade e o personagem de dentro, -: o rosto e a máscara.[4]
Mais uma vez, ocultada debaixo da máscara, volta a temática da coincidencia opositorum. Na casa, a acentuar a diferença entre masculino-estático e feminino-móvel dois patamares opostos: rectilíneo e em plano, o de Arlequim,


80. e 81. José de Almada Negreiros, Arlequim, varanda do primeiro piso da Casa de Rua de Alcolena. Fotografia©Paulo Cintra, Novembro 2008 e desenho preparatório para Arlequim, publicado no catálogo da exposição curado por Margarida Acciaiuoli, Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian (de 27 de Junho a 14 de Outubro de 1984), Lisboa, 1984, com o nº306 [s.l.]. Fotografia de Mário de Oliveira e Gustavo Leitão.
http://www.cidadaosporlisboa.org/imgs/imagens/1235081128W7uXO5am1Ri35HP1.JPG (_CCC4592.tif)

curvilíneo e inclinado, o da mulher. Por isso, a mulher com a veste constelada de estrelas toma a forma de lua dançante em redor do Arlequim-Sol, multicolor e fixo.



82. e 83. José de Almada Negreiros, Columbina, varanda do primeiro piso da Casa de Rua de Alcolena. Fotografia©Paulo Cintra, Novembro 2008 e desenho preparatório para Columbina, publicado no catálogo da exposição curado por Margarida Acciaiuoli, Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian (de 27 de Junho a 14 de Outubro de 1984), Lisboa, 1984, com o nº305 [s.l.]. Fotografia de Mário de Oliveira e Gustavo Leitão.
http://www.cidadaosporlisboa.org/imgs/imagens/1235081128W7uXO5am1Ri35HP1.JPG (_CCC4596)

Dois estudos preparatórios para ambas as figuras, assinados e datados, testemunham o envolvimento do artista na decoração da casa, desde o ano de 1952, embora os esboços contenham a variante de se apresentar especularmente face à versão final.
O casal, disjunto no piso inferior, volta a juntar-se na varanda do piso superior, protagonizando uma narração extremamente rica em cores e gestos. Não obstante a policromia face à anterior monocromia, aqui os dois mantêm as diferenças entre losangos e estrelas, ou pois, ou seja entre linearidade geométrica e esfericidade lírica.


84. José de Almada Negreiros, Cabaret, varanda do 2º piso da Casa de Rua de Alcolena. Fotografia©Paulo Cintra, Novembro 2008.
http://www.cidadaosporlisboa.org/imgs/imagens/1235081125H7pXU1sp9Hc61QV3.JPG (CCC4657.tif)

O azulejo tem uma estrita correspondência com um desenho publicado em 1922 no quinto número da revista Contemporânea


85. José de Almada Negreiros, Desenho (da colecção Arlequim), in “Contemporânea”, nº 5, Lisboa, 1922, p. 56.

onde um idêntico arlequim ao lado duma mulher posa sentado em frente a uma idêntica mesa, enquadrada por idênticas cortinas. A alusão ao amor perfeito, na perfeita fusão dos dois amantes num único ser, remete para a ideia do andrógino, sublinhada pela junção dos indivíduos e das cadeiras, quase duas metades dum só corpo e dum elemento só. A mesma ideia é reiterada por Almada ao longo da sua carreira, como demonstra esta ilustração do Diário de Lisboa, de 1924, que difere da anterior apenas pela substituição do solar Arlequim pelo mais lunar Pierrot, repetindo na pose e na legenda o mesmo conceito de síntese entre masculino e feminino.


86. José de Almada Negreiros, Pensamentos Loucos, publicado in Diário de Notícias, Lisboa, 1924, reproduzido em António Rodrigues, Desenhos de Almada no Diário de Lisboa, Lisboa, 1993, p. 89.

Mas o Cabaret azulejar ecoa uma ainda mais harmoniosa consonância com a já citada peça teatral Deseja-se mulher, escrita em Madrid, em 1928, e publicada 31 anos depois, em 1959:

(Desde quase o princípio do diálogo os gestos da mulher têm vindo num crescendo de «coqueterie» à sedução e até à fascinação. […] A fascinação provocada no homem é evidente, mas não lhe permite acção nem corresponder à da mulher. Fascinado, radiante, mas sem corresponder […] Respira fundo nas pontas dos pés. Não cabe em si de satisfação. Parece que sobe em levitação. Volta-se para onde ela esteve sentada e fica arrebatado a olhar o lugar como se ela lá estivesse.)[5]

87. José de Almada Negreiros, pormenor de Circo, varanda do 2º piso da Casa de Rua de Alcolena. Fotografia©Paulo Cintra, Novembro 2008.
http://www.cidadaosporlisboa.org/imgs/imagens/1235081125H7pXU1sp9Hc61QV3.JPG (_CCC4650)

Quase uma ekphrasis do texto é o encontro do Arlequim retratado em pontas com a mulher no mural mesmo em frente do casal sentado à mesa.
O tema do Cabaret é central na obra de Almada, tal como na escrita de José Manuel:
Procuro os cabarets como poderia procurar a solidão. É uma necessidade, uma urgência. Mas a solidão não anula, - integra. Pelo contrário, o cabaret desagrega, niiliza. É o ritmo artificial, convencional, mecânico de tudo, - todas as frases, todos os gestos, todos os sentimentos, todos os pensamentos, - tudo isso que me atrai como um grande repouso, um grande abismo.[6]
TRANSFIGURAÇÃO
Senti-me transportado aos imos da ficção.
Vi-a uma vez na rua e criei um romance.
Nesta vida, afinal, não há nada que canse:
é só preciso um pouco de imaginação.

Criar, fazer de tudo um pouco do que se é,
oferecer ao mundo o que só nos pertence.
Criei-a, fi-la deusa, embora haja quem pense
que passa as noites a dançar num cabaret...[7]
Psique, nesta varanda, torna-se mulher de Cabaret, tal como a protagonista de Deseja-se Mulher e a Manolita da Alquimia do sonho. Na descrição desta última, na altura do primeiro encontro, pode ser encontrada a razão da vivaz policromia dos azulejos da varanda virada para Sul.
PRIMEIRO ENCONTRO MANOLITA: Manolita agradeceu. Agradeceu o quê? Não me lembro, nem importa. Sei só que tudo em redor oscilou. O instante projectou-se no infinito. Todas as formas, todas as Cores se fundiram numa única forma, numa
única Cor.[8]
Nesta projecção do instante no infinito, vislumbra-se a constante almadina da janela aberta e da gaiola que se encontram em tantos trabalhos públicos e privados.


88. José de Almada Negreiros, pormenor de Cabaret, varanda do 2º piso da Casa de Rua de Alcolena. Fotografia©Paulo Cintra, Novembro 2008.
http://www.cidadaosporlisboa.org/imgs/imagens/1235081125H7pXU1sp9Hc61QV3.JPG (_CCC4647.tif)

Como no conto, também Manolita-Psique sofre metamorfoses:
Depois, não sei exactamente como nem porquê, tudo aconteceu vertiginosamente. O ar liquefez-se. Manolita, muito ao longe, transfigurou-se. Era um pequeno peixe cor-de-rosa num aquário multicor.[9]
Não um peixe, mas uma sereia encontra-se no mural cimeiro ao do Cabaret. Caligráfica, estilizada, esta sereia azulejar, desenhada como que pela ponta de um pincel,


89. José de Almada Negreiros, Sereia, pormenor da varanda do 1º piso da Casa de Rua de Alcolena. Fotografia©Paulo Cintra, Novembro 2008.
http://www.cidadaosporlisboa.org/imgs/imagens/1235081128W7uXO5am1Ri35HP1.JPG (_CCC4607)

formava um “par” com uma outra sereia, em tapeçaria, realizada por Sarah Affonso, variante dum seu óleo de 1939 e duma em cerâmica.[10]


90. 91. e 92. Sarah Afonso, Sereia, Manufactura das Tapeçarias de Portalegre, fotografia publicada em AA.VV., Leilão de Pintura e Escultura Portuguesa, Colecção Canto da Maya, Palácio do Correio Velho, Lisboa, 2000., que a ela se refere com o n.º 681, p. 139; Sereia, 1939, 1200 x 800, óleo sobre tela, fotografia publicada em Sarah Afonso/Almada: exposição conjunta, catálogo curado por Rui Mário Gonçalves, Miguel Torga, João Vasco, Arq. José de Almada Negreiros, Cascais, 1996, p. 93 http://pinturaportuguesa.blogs.sapo.pt/arquivo/sarah_afonso3g.jpg; Sereia prato em cerâmica policromada, 300 mm. de diâmetro, fotografia publicada em Sarah Afonso/Almada: exposição conjunta, catálogo a cura de Rui Mário Gonçalves, Miguel Torga, João Vasco, Arq. José de Almada Negreiros, Cascais, 1996, p. 87.

O esclarecido comitente procurava, provavelmente, um correspondente visual duma sua poesia datada de 1944, cujo título, Iluminura, bem condiz com o estilo decorativo, gráfico, estilizado do azulejo almadino, enquanto o tom popular, jovial, naïf convém à tapeçaria de Sarah.

ILUMINURA

Nas ondas do mar cantava
uma sereia vaidosa.
tam bela que me lembrava
uma pétala de rosa.

Um triste búzio escutava
sua canção melodiosa
e num murmúrio chorava,
em voz baixa e cautelosa.

De súbito a tempestade
escureceu a paisagem
que eu recordo com saudade

e nessa longa viagem
eu, búzio de soledade.
morri, ... em forma de imagem![11]
Por detrás da aparentemente despreocupada e pitoresca figura da sereia, poderia esconder-se mais uma alusão à união dos opostos. A exagerada inclinação do flexibilíssimo corpo da mulher-peixe, sinal duma metamorfose in fieri, ainda não completa, mas em curso, remete mais uma vez para o círculo, ao eterno devir que funde e supera os arquétipos da linha, dos ângulos. O artifício anatómico torna-se um expediente geométrico: a curva. É a curva que, nesse sentido, permite e veicula a perfeita fusão de todas as oposições, como, no nosso caso, a contígua imagem do masculino e feminino, abraçado num único nó, a bordo dum simbólico e alusivo barco, baptizado Eros.


93. José de Almada Negreiros, Par abraçado, pormenor do painel da varanda do 1º piso da Casa da Rua de Alcolena. Fotografia©Paulo Cintra, Novembro 2008. Publicado em Barbara Aniello, As metamorfoses de Psique na Casa da rua de Alcolena: em busca da obra de arte total, em Monumentos, revista semestral de edifícios e monumentos, nº 30, Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, Lisboa, Dezembro de 2009, pp. 106-113.
http://www.cidadaosporlisboa.org/imgs/imagens/1235081125H7pXU1sp9Hc61QV3.JPG (_CCC4602.tif)

Após a intermitente junção-disjunção simulada no alternado jogo do par que se exibe num número de equilibrismo nos trapézios, o casal volta a unir-se como num extremo, último ímpeto, no mútuo abraço.


94. José de Almada Negreiros, Trapezistas, pormenor do desenho preparatório do painel da varanda do 1º piso da Casa da Rua de Alcolena. Gentil concessão da Fábrica Viúva Lamego. Fotografia Gestifer, publicado in Suraya Burlamaqui, Cerâmica mural portuguesa contemporânea: azulejos, placas e relevos, Quetzal editores, Lisboa, 1996, p. 37.

Desta maneira o pólo feminino e o masculino voltam a reunir-se, tal como no mito. O nome Eros, gravado no casco do barco, não deixa espaço a dúvidas acerca da natureza desta união. Eros e Psique reconstituíram-se num ser andrógino, único e completo. Não só os dois corpos entrelaçando-se desenham um nó em forma de oito, sinal de infinito, mas também a sombrinha, que tanto nos lembra a protagonista da peça teatral almadina, é metade em gomos e outra metade em curva, tornando-se uma síntese, quase um ex-libris, da perfeita síntese dos contrários. Como é habitual, um reflexo desta escolha figurativo-numérica encontra-se na reflexão filosófica:

Ambos os sexos começam pelo dois e têm a mesma correspondência com o oito, o ovo
Órfico[12]
Mais uma vez, um eco desta iconografia ressoa nas páginas da peça teatral Deseja-se mulher, que constitui uma verdadeira fonte, juntamente com O mito de Psique, para a exegese do mito do andrógino em Almada e para a questão da ekphrasis da sua obra na casa de Rua de Alcolena. Curiosamente, a peça acaba com um divertido epílogo amoroso entre um marinheiro e uma sereia, involuntariamente caída na sua rede. A caprichosa criatura luta com ele e acaba por prendê-lo na mesma rede que antes a aprisionava. Desta cómica união nasce um pequeno ser humano com duas caudas de peixe e a peça conclui-se com o flash dum fotógrafo surgido para imortalizar o evento.[13]

É sem dúvida no teatro que está a chave para a compreensão da proximidade entre as imagens do barco e da sereia do painel azulejar. Mas como nos habitua Almada, na extraordinária coerência da sua obra, existe um eco em chave satírica deste dueto teatral numa historieta do período de Madrid, datada de 1927



95. José de Almada Negreiros, La sirena pobre, publicado in El Sol, 7 de Dezembro de 1927, reproduzido em El alma de Almada el impar: obra gráfica, 1926-1931, org. Bedeteca de Lisboa, textos de João Paulo Cotrim, Luis Manuel Gaspar; fot. Joaquim Cortés, Luis Pontes, Lisboa, Camara Municipal, 2004, p. 156-157.

No desenho da cenografia da peça Deseja-se Mulher, a obsessão pela fusão do amado com a amada desenvolve-se num absurdo matemático que ao longo da peça persegue os protagonistas: 1+1 = 1.

Portanto, com base na citação anterior do oito e do Ovo órfico, poderíamos escrever a fórmula 1+1 = 8, sendo a união perfeita também infinita. A experiência do amor passa pela solução de todas as oposições, segundo o mito andrógino narrado por Platão no Banquete e exemplificado por Almada na sua fórmula, cuja solução pertence mais à filosofia do que à matemática ortodoxa.


96. José de Almada Negreiros, Desenho, publicado em Deseja-se Mulher, publicado em Teatro, Lisboa, Estampa, 1971, p. 63, reproduzido também em António Rodrigues, Almada Negreiros: obra gráfica, Câmara Municipal de Lisboa, Lisboa, 1993, p. 64/h.

Mais ainda. Uma aura de luz envolve o barco e o casal, semi-encoberto pela hera, símbolo de amor e fidelidade, desenhando claramente uma forma: é o coração.


97. e 98. José de Almada Negreiros, Desenho, 1922, publicado em Histoire du Portugal par cœur, em Contemporânea, Grande Revista Mensal, dir. José Pacheco, edit. Agostinho Fernandes, ano 1, nº1, 1922, p. 30, publicado também em Vieira Joaquim, Fotobiografias do Século XX-Almada Negreiros, Bertrand, Lisboa, 2006, p. 67, já publicado no catálogo da exposição Almada, curada por Margarida Acciaiuoli, Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian (de 27 de Junho a 14 de Outubro de 1984), Lisboa, 1984, [s.l.], fotografia de Mário de Oliveira e Gustavo Leitão, reproduzido também em António Rodrigues, Almada Negreiros: obra gráfica, Câmara Municipal de Lisboa, Lisboa, 1993, p. 65 e José de Almada Negreiros, Par abraçado, pormenor do painel da varanda do 1º piso da Casa da Rua de Alcolena. Fotografia©Paulo Cintra, Novembro 2008, Publicado em Barbara Aniello, As metamorfoses de Psique na Casa da rua de Alcolena: em busca da obra de arte total, em Monumentos, revista semestral de edifícios e monumentos, nº 30, Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, Lisboa, Dezembro de 2009, pp. 106-113.
http://www.cidadaosporlisboa.org/imgs/imagens/1235081125H7pXU1sp9Hc61QV3.JPG (_CCC4602.tif)

De fórmula matemática a manifesto poético, do desenho ao azulejo, do teatro à decoração arquitectónica, o coração volta, assim, perpetuando a mesma obsessão pela unidade. Tal como a peça teatral tinha preanunciado, o amor entre o homem e a mulher é uma reconstituição da unidade perdida, é o andrógino platónico reapropriando-se das suas unidades dispersas.


99. José de Almada Negreiros, Capa para a peça de teatro Deseja-se Mulher, reproduzida em António Rodrigues, Almada Negreiros: obra gráfica, Câmara Municipal de Lisboa, Lisboa, 1993, p. 64.

O barco encontrado nesta segunda varanda da parede Sudoeste, revela em termos exotéricos o que o vitral, a Noroeste, ensinava em termos esotéricos: na união perfeita do homem com a mulher, os confins entre as identidades confundem-se, alcançando um unicum. A Duplicidade funde-se na Unidade.

Há no homem uma unidade ôntica, não importa agora os sistemas filosóficos
interpretativos dessa unidade, incompatível com qualquer logicismo,
matematicismo, ou qualquer outra designação sistemática.[14]
Por isso, como acontece frequentemente em Almada, a Matemática não coincide com a Filosofia: a Filosofia precede a Lógica.

[1] José Manuel, Boémia no Céu, in Eros II (Outubro 1951), op.cit.
[2] Cfr., entre outros, o ensaio de Fernandes da Silveira, Jorge, Almada é nome de Arlequim, em Almada Negreiros, A descoberta como necessidade. Actas do colóquio Internacional, Porto, 12-14 de Dezembro, 1996, Celina Silva (coord.), edição da Fundação Eng. António de Almeida, Porto, 1998, pp. 351-358.
[3] Almada Negreiros, Maria José de, Conversas com Sarah Affonso, Arcadia, Lisboa, 1982, p. 114.
[4] José Manuel, Alquimia do sonho, op. cit., p. 49.
[5] José de Almada Negreiros, Deseja-se mulher, em Teatro, op. cit., p. 37.
[6] José Manuel, Alquimia do sonho, op. cit., p. 11.
[7] José Manuel, Sargaços, op. cit., p. 17.
[8] José Manuel, Alquimia do sonho, op. cit., pp. 7-8 e 19.
[9] Ibidem, p. 19.
[10] A reprodução aqui publicada foi retirada da página 139 do catálogo: AA.VV., Leilão de Pintura e Escultura Portuguesa, Colecção Canto da Maya, op. cit., que a ela se refere com o n.º 681.
[11] José Manuel, As novas canções, op. cit., p. 27.
[12] José de Almada Negreiros, Ver, op. cit., p. 101.
[13] José de Almada Negreiros, Deseja-se Mulher, in Teatro, op. cit., pp. 64-65.
[14] Jorge Nemésio, Humanidade e Cultura, in Eros II (Outubro 1951), op.cit.

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