domingo, 20 de dezembro de 2009

9.2 A morte não é o fim.

Entrelaçado com o tema do Andrógino e da circularidade do tempo é o tema do ciclo Vida e Morte. A reflexão filosófica a partir do mito de Psique sobre este tema é significativa na leitura iconográfica do vitral, sobretudo à luz da descoberta dum texto do filósofo, filólogo e mitógrafo, Eudoro de Sousa, publicado em 1947. O seu emblemático título, Quem vê Deus, morre…, o subtítulo (O mito de Psique) e a sua dedicatória, A José de Almada Negreiros,[1] não deixam espaço a dúvidas acerca da leitura esclarecida do artista face às exigências do encomendante. O filósofo, que manteve uma fecunda convivência com Almada, oferece uma leitura aprofundada da fabula de Apuleio, interrogando-se sobre a relação entre as aventuras de Psique e a iniciação aos Mistérios. Na sua glosa ao mito, Eudoro de Sousa sublinha os dois momentos críticos do drama de Psique: a visão do Deus adormecido, ou primeira morte, e o despertar por parte de Eros, ou renascença depois da letargia da alma. Segundo a exegese alegórica do mito, Psique é a razão face às irascíveis e irracionais irmãs. É emanação dos astros mais luminosos, Sol e Lua, por isso suscita a inveja do astro menor, Vénus. A sua descida, visível no Pentalfa invertido, seria a descida da Lua para se unir a um corpo, sem que por tal renuncie à sua natureza.

Quem aparentemente morre, como Psique, renasce num status mais elevado, tornando-se deusa, se se deixar conduzir pelo Amor, como afirma Almada na sua Psique teatral:
ELA - Que queres? Estou como se tivesse nascido
quando te vi, apagou-se-me tudo dantes de te conhecer.[2]
O binómio Amor e Morte, Eros e Tanathos, aparece citado nas multíplices vozes da escrita de Almada:
O amor não teme a morte, teme não ter estado na vida.[3]
E, por exemplo, na peça teatral Deseja-se Mulher:

FREGUÊS – É pior que a morte. Estar vivo e não ter vida. Viver em branco. Nada. Absolutamente nada. Nem a morte. O que há mais neste mundo: nada![4]
Este conceito ecoa frequentemente na escrita e na obra de Almada:
Nasce segunda vez o que morre a morte primeira.
Nasce-se segunda vez o ser vivo eterno que somos.
Iremos por onde não há adesão possível à segunda vida
Porta do eterno.
Depois é o silêncio que fala
A paz que nos esperava.[5]
O tema do começo, o mito da origem, percorre toda a produção plástica, poética, teatral de Almada e, como já dissemos, o painel Começar, seria a representação concreta deste eterno início e desta contínua iniciação.

Psique, portanto, confessa ter renascido na visão de Eros, mas, ao mesmo tempo, fica cega: se a morte coincide com a visão, a renascença está ligada à cegueira.
Nutre a alma de todos os povos a crença de que só a morte paga o alto preço da contemplação da divindade: «quem vê Deus, morre», dizem os re­motos Séculos, pela voz do povo. Mas há uma alternativa: «quem vê um deus, morre ou.., cega!». Esta varian­te, genuinamente grega, da crença universal, nasceu na religião, desenvol­veu-se na poesia, floresceu na filosofia.[6]
E aqui ingressa a exegese simbólica do mito: a morte coincide com o início ou iniciação, a cegueira corresponde a uma segunda visão ou clarividência:
Então [na morte] sofre [a alma] uma impressão como a dos iniciados nos mistérios maiores; por isso, na morte (τελευτή) como na iniciação (τελετή) a palavra concorda com a palavra, e o acto com o acto: primeiro, digressões e circuitos debilitantes, certas andan­ças suspeitas e intermináveis através das trevas, e antes do termo, todos os terrores, - medo, temor, suor e espan­to -, mas depois irrompe uma luz admirável e acolhem-nos lugares puros e ridentes pradarias…[7]
Portanto consequência fatal do encontro com a divin­dade é a morte ou a cegueira, mas a mesma morte ou cegueira são premissas necessárias para a vida imortal e a visão plena.
Na verdade, a equação morte-cegueira implica a dos opostos: vida-contemplação. Assim se compreende que o perfeito iniciado, que ao neófito pode dizer: não há morte!, seja denomi­nado, επόπτης- o que vê.[8]
Por isso mesmo, a Psique do vitral, a figura deitada, é apagada, enquanto Eros aparece aceso, iluminado, cintilante no vitral.

Em perfeita consonância com Almada, José Manuel escreve:
Queria-te morta para te amar em futuro e viver-te em passado.[9]
Tempo e espaço anulam-se pela Alma que conhece o Amor, bem como se apagam os confins entre vida e morte,
Eras tu que revivias em mim ou eu que revivia em ti? A união dos corpos e das almas, fora do espaço, fora do tempo, teria sentido?[10]
desaparecem os limites entre corpos e almas

Viver é outro modo de estar morto.
Ser é não-ser. Nada em verdade existe.
o que te prende à vida é o sonho e o erro.[11]
porque, como explica o filósofo,

o amor é comunhão, identificação, unificação. O amor transcende e exclui o dualismo sujeito-objecto. A contemplação estética pura e a criação de arte são as formas perfeitas do amor.[12]
O proprietário expressa por palavras o mesmo ideal realizado pelo artista em imagens. De tal maneira à perfeita união corresponde a perfeita confusão e fusão do eu no tu:
E a tua solidão recebeu-me como se eu fosse uma Outra imagem de ti.[13]
E ainda:
Aconteceste em mim e eu encontrei-me em ti.[14]
[1] Eudoro de Sousa, op. cit., pp. 1-17.
[2] José de Almada Negreiros, O mito de Psique, in Teatro, op. cit., p. 178.
[3] Ibidem, p. 179.
[4] José de Almada Negreiros, Deseja-se Mulher, in Teatro, op. cit., p. 23.
[5] José de Almada Negreiros, Itinerario sobre o Joelho, Poesia, op. cit., p. 207.
[6] Eudoro de Sousa, op. cit., p. 13.
[7] Idem.
[8] Ibidem, p. 14.
[9] José Manuel, Alquimia do sonho, op. cit., p. 20.
[10] Idem.
[11] Ibidem, p. 33.
[12] Ibidem, p. 22.
[13] Ibidem, pp. 25-24.
[14] Ibidem, p. 26.

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