domingo, 20 de dezembro de 2009

3. O Mito de Psique: um breve excursus através dos símbolos.[1]

Era uma vez um rei e uma rainha que tinham uma filha de rara beleza de nome Psique. Tão grande era a sua fama que os homens começaram a adorá-la, descuidando os rituais de Vénus. Esta, invejosa, planeou vingar-se, enviando o seu filho Eros com o intuito de a fazer apaixonar-se pelo ser mais horrível da terra. Entretanto, Psique lamentava a sua solidão, ao contrário das irmãs, que já se tinham casado. Vítima da sua própria beleza parecia, aos olhos dos mortais, inatingível pelo amor dum homem. Porém um ainda mais mísero destino lhe reservava o futuro: o Oráculo preanunciara que, num lugar terrível, a donzela haveria de celebrar es­ponsais fúnebres com um monstro que enchia de horror os pró­prios deuses. Psique, acompanhada por todo o povo em pranto, submeteu-se ao seu Fado e foi, com passos firmes, ao encontro do drama da sua existência. Do alto de um rochedo desceu a um vale delicioso onde se erguia um palá­cio encantado. Vozes de corpos invisí­veis convidaram-na a sentar-se à mesa nupcial e, chegada a noite, recebeu em seu leito o incógnito amante. Ele advertiu-a dos horríveis tormentos que teria que sofrer, se confiasse na perfídia das irmãs mais que nas delícias da hora presente. Eros,­ que outro não era senão o nocturno visitante, diante de tanta beleza, tinha decidido desobedecer à mãe e, desistindo da vingança, substitui-se ao monstro, espetando-se nas próprias flechas e apaixonando-se perdidamente por Psique. Alertando a sua amante para não dar ouvidos às insídias das irmãs, que a iriam aconselhar a examinar o seu semblante, disse Amor, ou seja Eros, em relação ao seu rosto: “se uma vez o vires, nunca mais o verás”. Sucessivamente, como para lhe mitigar o tormento, Eros anunciou a Psique a sua iminente maternidade, mas acrescentou “se guardares o nosso segredo em silêncio, o nosso filho será divino; se o divulgares, será mortal”. O Fado cumpriu-se. A inveja e a per­versidade das irmãs levaram Psique a ignorar os avisos do seu terno amante e uma noite, à luz clara e brilhante duma lucerna cheia de azeite, a miserável aproximou-se do leito onde julgava que dormisse o terrível monstro e pôs-se a perscrutar o seu vulto. Mas para sua grande surpresa Psique, que não se contentava com o seu amor cego, descobriu a imagem sublime do deus adormecido. Resultado da visão, Psique estremeceu e o seu corpo ardeu, como a luz da lucerna, rasgando o véu da noite. De­pois, insaciável, levou-a a curiosidade a tocar nas armas que jaziam aos pés do leito e, de mãos ainda frementes, feriu-se nas setas do poderoso deus: “assim a ignorante Psique se inflamou de amor por Amor”. É então que uma gota ardente da lucerna caiu no ombro da divindade, que despertou e desapareceu, não cuidando da sua própria ferida. Este é o primeiro momento crítico no drama de Psique. Desde então, vítima de si mesma, a Alma, ou seja Psique, passará toda a sua existência condenada a um va­guear inquieto pelo mundo em busca daquele Amor que a desobediência lhe arrancou. Psique, depois de ter recorrido em vão a Ceres e a Juno, caiu em poder de Vénus, que já então a procurava, não só pela an­tiga afronta, como também pela vin­gança frustrada. Não correspondendo às súplicas da jovem, Vénus impôs-lhe tarefas superiores às possibilidades humanas, tais como: separar um monte de sementes diversas, trazer lã dos car­neiros do Sol, ir em busca da água estígia e, enfim, descer aos infernos para de lá trazer num frasco um pouco da formosura de Prosérpina. Em todas estas provas a Alma foi assistida por Amor que lhe prestou o auxílio necessário ao bom êxito das provas. As formigas separaram as sementes numa noite de labor; uma “cana viçosa, suave criadora de música”, aconselhou-a a esconder-se dos ardores do Sol; a águia, “ave real do supremo Jove”, encheu a urna de água estígia; a torre, donde Psique intentou atirar-se para “ir ter directamente aos infernos”, en­sinou-lhe o caminho e proporcionou-lhe o viático; e, quando no regresso a invadiu “um sono infernal e verdadeiramente estígio”, por, mais uma vez, não ter resistido à curiosidade de abrir o frasco, é o próprio Eros que acorre, “limpando cuidadosamen­te o sono e desperta Psique com o inocente toque da ponta de uma das suas setas”. Este despertar é outro momento crí­tico no drama de Psique. Mas o se­gundo ferimento das setas de Amor conferiu-lhe a imortalidade e o gozo pleno da união perfeita com o divino esposo.

Todos os momentos-chave e os eventos críticos do mito estão dramática e simbolicamente representados na Casa da Rua de Alcolena.

[1] Toda a narração é retirada de Eudoro de Sousa, Quem vê Deus, morre... : o mito de psique, sep. do Atlântico, n. 5, Lisboa, 1947, pp. 1-17. O texto que concerne o mito de Psique, pp. 5-7, aqui readaptado e resumido, foi dedicado a José de Almada Negreiros e publicado exactamente quatro anos antes do primeiro projecto de construção da residência da Rua Alcolena, na sequência dum longo convívio que o professor, filósofo, pedagogo, filólogo, mitólogo teve com o artista. Segundo Joaquim Domingues foi o contacto com Almada Negreiros e Santana Dionísio que despertou em Eudoro de Sousa o interesse pelo simbólico, como “síntese sensível da ideia unitária e universal”. Cfr. De Ourique ao Quinto Império. Para uma Filosofia da Cultura Portuguesa, Lisboa, INCM, 2002. Pela profunda interligação entre a interpretação sousiana do mito e a representação do mesmo no vitral da autoria de Almada Negreiros que ornava a casa, e dada a anterioridade do texto face ao projecto da casa, julgamos importante referir esta fonte e não outras, como fonte iconográfica privilegiada da obra. Vide também Luís Loia, O Essencial sobre Eudoro de Sousa, INCM, Lisboa, 2007.

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