domingo, 20 de dezembro de 2009

5. O hortus conclusus de António Varela: a viagem botânico-simbólica de Psique no jardim de Alcolena.


19. Planta geral da Obra Rua de Alcolena, Lote 149, autografada por António Varela com indicação das plantas, árvores e elementos decorativos do jardim. Espólio Ferrão. Fotografia©Paulo Cintra, Novembro 2008.[1]

19A. Esquema a partir da Planta geral da Obra Rua de Alcolena, Lote 149, autografada por António Varela com indicação das plantas, árvores e elementos decorativos do jardim. Desenho de Barbara Aniello.

Superado o recinto sagrado, prelúdio ao acesso à casa, deparamo-nos com um vasto jardim que abraça e emoldura a construção, atenuando a sua aparência abstracto-geométrica. Da análise da planta original assinada pelo arquitecto, emerge uma atenta e ponderada escolha das plantas, árvores e elementos decorativos que, no meu entender, não é fruto duma elaboração casual ou meramente estética, mas sim dum sábio e ciente programa mitográfico-simbólico. Através do significado de cada árvore,[2] seguindo o seu intuito ou a sugestão de outrem, António Varela desenha botânica e simbolicamente a peregrinatio animae de Psique em busca de Eros. Assim, no mito como no jardim, podemos ler a história da Alma que, não contente com o seu amor cego, vítima da sua dúvida (representada pelos Oleandros) descobre a imagem sublime do amante adormecido, “inflama-se de amor por Amor” e, abandonada pelo amado, ela, que era destinada a ser deusa imortal, recai numa humana e mortal condição. A este primeiro momento crítico do drama corresponde uma árvore que pela sua longevidade e persistente verdura é duplamente alusiva à Morte e à Imortalidade (Ciprestes). Daqui em diante começa a peregrinação da Alma em busca do Amor perdido, não sem sofrimento e lágrimas (Salgueiro chorão).[3] A memória do amado (Alecrim do Norte) impulsiona Psique a enfrentar inúmeras provas, a última das quais é roubar o perfume a Perséfone. Vítima pela segunda vez da sua própria curiosidade, Psique abre o frasco e é invadida por “um sono infernal”. Esta segunda morte (Ciprestes) é o outro momento crí­tico no drama, mas desta vez é Eros a despertar Psique e a doar-lhe a imortalidade, como prémio pela sua perseverança (Magnólia). Neste sentido é particularmente indicativo o outro significado do Alecrim do Norte, resumido pela frase “a vossa presença me reanima”, devido ao cheiro que a planta exala.[4] A arquitectura do jardim contém um duplo nível de leitura, tornando visível, por um lado, o mito e as peregrinações de Psique, por outro, o conceito filosófico da viagem circular cumprida pela Alma na reincarnação. Neste roteiro botânico, debaixo dos véus da fabula, deciframos a teoria platónico-pitagórica da Metempsicose, segundo a qual a Alma reincarna em novas vidas, depois de ter mergulhado nas águas do Léthe, o rio do olvido que apaga a memória das vidas passadas. Ao Léthe, representado pelo espelho de água rectangular no lado sudoeste do jardim, corresponde no lado oposto o Eunoé, o rio da memória, citado por Dante na Comédia. O primeiro faz esquecer o Mal e os pecados passados, o segundo faz lembrar unicamente o Bem. Junto do Léthe, quebrando o itinerário circular das plantas, não por acaso está a Tuia, ou arbor vitae, cuja etimologia remete para o grego incenso, particularmente significativo num contexto de purificação, ascensão e reincarnação da Alma.

Os dois lagos poderiam também ter outro significado. De facto é num rio que, depois do abandono de Eros, a inconsolável Psique se tenta suicidar, mas as mesmas águas trazem-na para a margem até ao encontro com Pan que a convida a esquecer o passado, a procurar e ganhar novamente o amor de Eros. Daqui a coincidência entre o rio do olvido e a perseverança significada pela Magnólia. Por outro lado, o segundo lago poderia representar o rio Estíge, atravessado por Psique à procura de Perséfone, conhecido por ser rio da imortalidade, destino final da futura deusa.

As formas opostas dos dois lagos, geométrica-orgânica, ortogonal-curvilínea, masculina-feminina, aludem à coincidentia opositorum que percorre toda a iconografia da Casa. Em particular, a do espelho de água a Noroeste, em contraponto com os avanços e recuos das duas varandas exteriores, das escadas em semi-elipse interiores e dos dois grupos de Ciprestes, remete, como explicaremos mais adiante, para a dialéctica cheio-vazio, plenitude-escassez dos míticos progenitores de Eros, Poros e Pênia.

[1] Requereu a Senhora Dª. Madalena Ferrão que fosse referido que esta planta foi descoberta pela investigadora Cátia Mourão e pelo fotógrafo Paulo Cintra, aquando da visita ao espólio da família de José Manuel Ferrão e de Maria da Piedade Figueiredo Mota Gomes.
[2] Alain Gheerbrant, Jean Chevalier, Bernard Gandet, Dictionnaire des symboles: mythes, rêves, coutumes, gestes, formes, figures, couleurs, nombres, Paris: Robert Laffont, 1969, pp. 274 e 677.
[3] Na linguagem das flores, o Salgueiro-chorão indica sem dúvida a melancolia. Esta árvore remete também para a imagem de uma “amante desventurada”, que “parece murmurar sem cessar: é dos males o pior a ausência!” e que, exilada, está permanentemente em busca do amado. Cfr. Diccionario da linguagem das flores, Lisboa: Typ. Lusitana, 1868, pp. 46-47.
[4] Ibidem, p. 15. Além destes significados, o Alecrim do Norte representa também “o amor fiel”, vide Diccionario e linguagem das flores, das cores e das pedras preciosas, Lisboa: Aillaud, Alves, 1913, p.12, e o profundo entendimento entre amados: “quero o que tu queres”, ibidem, p. 84.

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