domingo, 20 de dezembro de 2009

9.1 Um par andrógino.

Com respeito aos estudos preparatórios, dois desenhos e um óleo, Almada não troca o feminino pelo masculino, mas encobre os atributos de ambos através do expediente do ombro e da cabeça da figura despertadora, face à figura a despertar. Ainda visíveis, embora ocultados, são a curva do seio da personagem dourada e o membro da figura deitada.

Almada, talvez sob indicação do comitente, funde não só os dois momentos da fabula, como também o masculino e o feminino, o divino e o humano, dissolvendo as individualidades num único ser andrógino: “a raça sagrada da mestiçagem dos deuses e humanos que vivem por amor”.

Por isso é propositada a ambiguidade dos corpos efébicos de ambas as figuras. A razão desta indeterminação é a partilha, a fusão enraizada na exegese simbólica do mito e não a troca das duas identidades. No instante do seu despertar, no fim da sua viagem iniciática, Psique unir-se-á para sempre ao seu amado e os dois formarão um ser único. A fusão dos seres em virtude das provas superadas por amor, não é só entre os sexos, mas entre os status.
Talvez eu procurasse em ti o sonho, talvez tu procurasses em mim o sonho. Mas nós não éramos sonho,- éramos corpo e alma…[1]
Assim, na Alquimia do sonho, José Manuel descreve a união andrógina do casal unido no intuito de um recíproco despertar do mundo onírico.
Não sei se me pertences
Não sei se me possuis
Sei que estamos fundidos
Na mesma grande dor[2]

Seremos dois embora
Só existas em mim[3]

Tua carne perdeu qualquer sentido
Viveste puro espírito em minha alma[4]
É o sonho que funde e confunde os opostos: alma e corpo, feminino-masculino, vida-morte. Assim o feminino torna-se masculino e o masculino, feminino:

ELA - Não sei se existo se sonho: sinto-me como fechada dentro de tudo que é teu, e sem eu ter trazido nada que me pertença
O divino humaniza-se e o humano diviniza-se, como diz Almada, nas palavras de Eros. O mito, narrado no Banquete de Platão, descreve o andrógino como filho não do sol, como os homens, não da terra, como as mulheres, mas da lua. Os andróginos, participando de ambas as naturezas, masculina e feminina, atreveram-se a projectar a escalada ao Olimpo, mas Zeus, por punição, separou cada um deles em duas metades, dividindo-os para sempre. Desde então cada metade está em permanente estado de insatisfação e procura eternamente a outra metade. Encontrado o “outro” a procura termina e homens e mulheres fundem-se numa completa e recíproca união.

Almada persegue a ideia unitária do Andrógino, cujo mito é uma das mais recorrentes ekphrasis do seu corpus, estando presente desde a sua partida para Paris, neste Par de 1920,


44. José de Almada Negreiros, Par, 1920, Lapis e aguarela sobre papel, 293 x 228 mm., col part., Lisboa, Expo. CAM., cat. 8. Fotografia de Victor Branco e Campiso Rocha Henriques Ruas, publicado também em Vieira Joaquim, Fotobiografias do Século XX-Almada Negreiros, Bertrand, Lisboa, 2006, p. 69. Fotocompográfica, Lda.

nos desenhos da década dos anos ‘20,


45. José de Almada Negreiros, Ilustração para La Raquete japonesa, cuento de Ramón Gomez de la Serna, 1929, publicado no jornal La Esfera, 26 de Outubro de 1929, pp. 14-15, Madrid, BN Z 6557, reproduzido em Almada o escritor, o ilustrador, catálogo coord. Manuela Rego, Lisboa, 1993, p. 173. Fotografia de Luís Carlos.

nos acrobatas e arlequins dos anos ‘20-‘40, que passam duma posição de faces encostadas


46. José de Almada Negreiros, Arlequim e Columbina, 1940, 42 x 30, tinta da china sobre papel, ass. dat., col. Miguel Veiga, Porto, fotografia de Mário de Oliveira e Gustavo Leitão, publicado no catálogo Almada, Expo C.A.M., 1984, [s.l.]. Fotografia de Victor Branco e Campiso Rocha Henriques Ruas.

a uma partilha de traços fisionómicos,


47. José de Almada Negreiros, Arlequim e Columbina, 1938, Aguarela, tinta da china, lápis sobre papel, 533 x 452 mm., ass., dat., col. Arq. Carlos Tojal, Lisboa, fotografia publicada em Vieira Joaquim, Fotobiografias do Século XX-Almada Negreiros, Bertrand, Lisboa, 2006, p. 9, Fotocompográfica, Lda.

até às soluções mais abstractas que perpetuam o motivo da síntese no abraço.


48. José de Almada Negreiros, Encontro, 1937, desenho para o livro de poemas inédito, BN J. 4349M, publicado em Almada o escritor, o ilustrador, catálogo coord. Manuela Rego, Lisboa, 1993, p. 79. Fotografia de Luís Carlos.

O tema do andrógino é recorrente na parede sul da casa, nomeadamente nas varandas dos primeiro e segundo pisos, onde a união exibida pelo par dançante, dinâmico, no vórtice do baile,


49. José de Almada Negreiros, Par dançante, pormenor do painel da varanda do 2º piso da Casa da Rua de Alcolena. Fotografia©Paulo Cintra, Novembro 2008, publicado em Barbara Aniello, As metamorfoses de Psique na Casa da rua de Alcolena: em busca da obra de arte total, em Monumentos, revista semestral de edifícios e monumentos, nº 30, Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, Lisboa, Dezembro de 2009, pp. 106-113.
http://www.cidadaosporlisboa.org/imgs/imagens/1235081125H7pXU1sp9Hc61QV3.JPG (_CCC4650.tif)

faz de contraponto à fusão, mais lírica e extática do casal abraçado no barco


50. José de Almada Negreiros, Par abraçado, pormenor do painel da varanda do 1º piso da Casa da Rua de Alcolena. Fotografia©Paulo Cintra, Novembro 2008, publicado em Barbara Aniello, As metamorfoses de Psique na Casa da rua de Alcolena: em busca da obra de arte total, em Monumentos, revista semestral de edifícios e monumentos, nº 30, Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, Lisboa, Dezembro de 2009, pp. 106-113.
http://www.cidadaosporlisboa.org/imgs/imagens/1235081125H7pXU1sp9Hc61QV3.JPG (_CCC4602.tif)

Como sempre esta ideia ecoa na escrita do artista:
Mulheres e homens são duas metades da humanidade – a metade masculina e a metade feminina.[5]
Almada, poeta e pintor, explora coerentemente o mito platónico do Andrógino na sua produção figurativa e literária. À obra de Almada faz de eco a escrita do proprietário que cita, velando, a mesma temática mítica na sua Alquimia do sonho.

De qualquer modo era preciso recomeçar, voltar outra vez ao princípio, à inocência primeira. Era preciso que eu abdicasse, que tu abdicasses, que nos fundíssemos num único corpo, numa única alma, e que o mundo se fundisse connosco, sem crítica, sem análise. Era preciso que a oportunidade viesse, e que tu não a perdesses, e que eu não a perdesse...[6]
Tal como Almada, José Manuel reitera também no desenho a efígie do mítico ser, como acontece nas capas, desenhadas pelo autor, de As quatro Estações,


51. José Manuel, capa para As Quatro estações, Biblioteca Nacional de Lisboa, 1963, desenho do autor. Reprodução de Barbara Aniello.

e de Alquimia do Sonho:


52. José Manuel, capa para Alquimia do sonho: romance poemático, 1952, Biblioteca Nacional de Lisboa, desenho do autor. Reprodução de Barbara Aniello.

Em particular, esta última prova o processo de fusão in fieri de dois seres num só. É como se assistíssemos em directo, como pelo efeito flou de sobreposição das lentes cinematográficas, à junção do Dois no Um, à mistura das identidades, à união dos opostos. Estes conceitos filosóficos são bem exemplificados pelo desenho que, partindo da apresentação justaposta de dois seres separados, brota numa terceira imagem, criada por sobreposição de alguns simples, estilizados pormenores anatómicos: os narizes tornam-se cabelos, as faces nariz. Uma aura apurada em espiral circunda os seres, de dois reduzidos a um. A importância do texto na leitura da casa é fundamental e dá-nos também o espectro dos interesses do proprietário, que terá tido provavelmente influência nas escolhas estilísticas e iconográficas dos artistas. Na poesia Balada assiste-se a uma verdadeira alquimia metamórfica da alma e do corpo nos quatro elementos: ar, fogo, água, terra. Mais do que uma partilha de identidade ou uma fusão de sexos, trata-se aqui de uma passagem de estados. Corpo e alma tornam-se alternadamente matéria líquida, sólida, gasosa, abnegando a própria natureza.

BALADA

Vieste tu
e roubaste-me a alma;
vieste tu
e roubaste-me o corpo;
vieste tu
e tiraste-me a mim próprio.

Depois…

Depois a minha alma
foi flâmula
nas tuas mãos,
foi fogo sagrado
nos teus olhos,
foi ária

na tua voz,
foi néctar
nos teus lábios,
foi sonho
na tua alma;

depois o meu corpo
foi lama
nas tuas mãos,
foi desprezo
nos teus olhos, foi vómito
na tua voz,
foi náusea
nos teus lábios,
foi ódio
no teu corpo;

depois. . .

Depois devia haver
alguma coisa mais;
depois talvez houvesse
o indistinto segredo
de uma folha a cair,
efémera, irreal,
num adeus sem depois...[7]
José Manuel volta ao arquétipo platónico para se apoderar da ideia de coexistência dos opostos, tornando-o sinónimo de ser perfeito, auto-suficiente e completo.

TEMA E VARIAÇÕES

Para que olhas tu a cidade longínqua?
Tua alma é a cidade longínqua.
FERNANDO PESSOA, 1950

Tu és presente em tudo
o que pensas e sentes
Porém, em ti não há
lugar para mais nada.
Estás completo em ti mesmo
e enches o mundo todo.[8]
Neste sentido, a poesia datada de 1950, um ano antes do projecto da casa, é muito significativa para a leitura do seu programa iconográfico, reflectindo sobre o alquímico ideal da coincidentia opositorum e a sua ultrapassagem num contexto de contínua metamorfose (tema e variações) e de busca da alma, evidenciada na epígrafe, significativamente assinada por Fernando Pessoa.

O tema do equilíbrio dos opostos, ligado ao Amor e ao Conhecimento, é repetido noutros espaços da sua poética:
PRIMEIRO RETRATO
Em literatura, o pior vício é a definição, a delimitação dos personagens…. Não é possível definir-te, delimitar-te. Mas há mais. Tu não foste para mim um conhecimento, - mas uma vivência, um sentimento, uma intuição…
Foste para mim qualquer cousa de vago, impreciso, e simultâneamente concreto, absoluto, - silêncio e música, distância e proximidade, - todos os contrários, desde fora e desde dentro.[9]
Ecos deste conceito platónico do Amor encontram-se nos colaboradores da revista Eros.

O conhecimento é uma vivência o sujeito conhece o objecto por causa do amor.[10]

Filosofia engloba em si o ser e o conhecer. A “gnosia” não é mais do que o veículo intermediário que permite atingir os “ontos”, como etapa final de toda a filosofia.[11]

“o espírito, como síntese dialéctica conseguida através da “gnosia”, interpenetra-se estreitamente com o “ontos”, a vida, pelo seu carácter de vivência. A filosofia não pode ser, portanto, outra coisa senão uma expressão de cultura, desenvolvimento dialéctico e expressão sintética de vida no espírito.[12]
Voltando ao nosso vitral, pela mitologia sabemos como a potência do arquétipo do andrógino está ligada às divindades, às suas transformações e ao tema da iniciação à gnose. Por exemplo, andrógino é Tirésia, o vidente da Odisseia, tornado tal por ter assistido à junção de duas serpentes sagradas. A serpente, na sua forma circular, Ouroboros, anula as diferenças entre fim e início, representando o Todo, o Inteiro, o Universal. Como Tirésia, também Psique, tendo visto a Divindade, torna-se andrógina, envolvendo nesta transformação o próprio Eros. Sujeito e objecto, contemplador e contemplado estão envolvidos em mais uma metamorfose: de dois seres tornam-se um.

Almada escolhe voluntariamente encobrir os vestígios dos opostos, apagando e velando as recíprocas identidades sexuais, sublinhando a presença do circular, do alquímico, do recíproco no retrato de Eros e Psique. Prelúdio desta ulterior metamorfose de Psique é a escultura cimeira do portal decorado por António Paiva. Ao círculo do ouroboros faz de eco esta circularidade de gestos, poses, atitudes do par efigiado no vitral de Almada Negreiros. O próprio enquadramento da cena escolhido pelo autor remete para o círculo. Almada, sendo pintor, poeta, dramaturgo e coreógrafo, não por acaso realiza uma imagem que simultaneamente pinta, conta, actua e dança a simbólica fusão dos seres no Um. De facto, as duas figuras descrevem um círculo, através do mútuo estender dos braços e da postura inclinada da cabeça. A figura supina com o ombro esquerdo une os dois vultos, descrevendo um círculo em alto que a figura de bruços sublinha e acompanha com o seu braço direito. Por sua vez, a figura inclinada com o seu braço esquerdo indica a conclusão inferior da circunferência, enquanto a supina segue a sugestão, descrevendo um mais amplo e aberto semicírculo. Eis, no momento da visão, como no caso de Tirésia, a metamorfose andrógina. A raça do sol, masculina e a da terra, feminina, fundem-se na luz mística, criando a terceira raça, a da lua.

[1] José Manuel, Alquimia do sonho, op. cit., p. 36.
[2] José Manuel, Eros, in Eros I (Abril 1951), op. cit., I, 21.
[3] Ibidem, I, 22.
[4] Ibidem, I, 34.
[5] José de Almada Negreiros, A invenção do dia claro, em Manifestos e Conferências, op. cit., p. 57.
[6] José Manuel, Alquimia do sonho, op. cit., pp. 36-37.
[7] José Manuel, Sargaços, Coimbra Editora, Coimbra, 1947, pp. 47-46.
[8] José Manuel, Tema e Variações, op. cit, p. 20.
[9] José Manuel, Alquimia do sonho, op. cit., pp. 25-26.
[10] Jorge Nemésio, Esboço para uma filosofia expressão de uma cultura, em Eros III-IV (Dezembro 1952), op. cit.
[11] Ibidem.
[12] Ibidem.

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