domingo, 20 de dezembro de 2009

9.3 Ver é Saber.

À luz da lucerna, Psique realiza a Visão e com a Visão alcança o Conhecimento. Nesse sentido Psique é uma Eva que padece as consequências do seu pecado. Responsável pela transgressão do veto divino, Psique sofrerá toda uma série de provas para se regenerar e ascender aos cumes da Sabedoria e da Omnisciência.

Para Almada o pecado está, contrariamente ao ensinamento do mito, na não-visão. Almada enfatiza sempre o conceito da visão e faz de Prometeu, o herói da Humanidade, o seu alter-ego, alguém capaz de ver antes, de pré-ver. A heroicidade de Prometeu, para Almada, está toda na visão.

José Manuel, mais uma vez, está de acordo com as ideias do artista, atestando-o na sua poesia datada de 1950:
CANTATA
à memória de Fernando Pessoa

Mestre, o nosso maior pecado, o mais
imperdoável de todos os pecados,
é não querermos ver que estás em nós
e nos pertences em verdade e amor.[1]
A data e a dedicatória da poesia, não podem ser ignoradas num contexto como o do edifício da Rua de Alcolena, construído em torno do tema da visão e do conhecimento e decorado por um artista que pertenceu à geração de Orpheu.

O tema da iluminação é estritamente conexo com o da visão.

A biblioteca de José Manuel torna-se, nesse sentido, uma metáfora do Amor e da sede do saber, que passa através do apagamento dos sentidos, em particular do olhar (órgão físico), e origina na alma do iniciado uma segunda vida, graças à vista interior (órgão psíquico). Como no pôr-do-sol, neste vitral sul-ocidental, entrevê-se simultaneamente uma morte e uma potencial renascença, um apagamento e uma iluminação.

Uma reverberação deste status místico e suspensão estática encontra-se na produção literária do proprietário da casa e principal fruidor deste espaço privado:
Vendaram-me os olhos. Ceguei, apesar da dolorosa experiência de todos os dias. Aqui, pelo menos, não sofro. Tudo me é indiferente. Permaneço longe. Quem sou, - o que penso, o que sinto, - deixou de existir. Perdi consistência. Sou apenas o instinto agindo obscuramente[2]
Sinto-me suspenso no tempo, estático no espaço[3]
De resto o oculto está interligado com o Amor, num contexto místico-sagrado como o da Biblioteca que acolhia o vitral.

Ocultamente, secretamente sagrei o meu amor… Sei que não exististe como eu te sonhei. Sei que não descobri o teu segredo. No entanto, ocultamente, secretamente sagrei-te o meu amor.[4]
Quando se entrega ao Amor, Psique é cega:
ELA - Dei-te a minha vida inteira pra sempre.
ELE - Vi que ma davas às cegas.[5]
Mas, mal aconselhada pelas suas irmãs, é levada pela sua curiosidade a espiar o seu objecto de Amor. Na peça teatral Psique cumpre por duas vezes este acto transgressivo: quando espreita pelas portas da caverna, pelas simbólicas portas do conhecimento, o rosto da mãe do seu amante, e na alcova com o seu amado, como lembra o próprio Eros:

ELE - Seguiste-me. Espiaste-me. Quiseste mais certeza de mim do que segurança em ti.
Como amiúde acontece no trabalho poliédrico mas unitário de Almada, há uma reverberação figurativa desta cena teatral num desenho de 1940.

53. José de Almada Negreiros, Desenho, 1940, publicado no catálogo da exposição Almada, curada por Margarida Acciaiuoli, Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian (de 27 de Junho a 14 de Outubro de 1984), Lisboa, 1984, [s.l.]. Fotografia de Mário de Oliveira e Gustavo Leitão.

Não por acaso aqui Eros, dialogando com a mãe Vénus, é vestido de arlequim e é espiado por uma Psique que espreita por detrás duma grande tela-caverna. Reencontraremos análogos Eros/Arlequins disseminados nas paredes da residência.

Não por acaso Almada substitui a caverna pela tela, sendo para ele o desenho a primeira e privilegiada forma de conhecimento.
 Os olhos são para ver e o que olhos vêem só o desenho sabe.[6]
Primeiro o saber passa pelos olhos, depois é o desenho que recolhe esta ciência visual e a mostra.

[1] José Manuel, Cantata, Tip. Ideal, Lisboa, 1950, p. 14.
[2] José Manuel, Alquimia do sonho, op. cit., pp. 12-14.
[3] Ibidem, pp. 17-14.
[4] Ibidem, p. 57.
[5] José de Almada Negreiros, O mito de Psique, em Teatro, op. cit., p. 178.
[6] José de Almada Negreiros, Auto-retrato, com dedicatória “Ao meu amigo Mário ribeiro”, Sintra, 1926, col. Part., lisboa, expo. Cam. 84 cat. N. 29.

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